Obras como “Minha Pátria” o transformaram no “pai da música checa”
Compositor-cidadão – este é o elogio que mais teria deixado o checo Bedrich Smetana satisfeito. Pois ninguém encarnou com mais tenacidade e talento a luta pela afirmação da nacionalidade boêmia. Apelidado pela posteridade de “pai da música checa”, apostou na música como característica definidora do povo checo. “A vida dos checos está na música!” foi o slogan que gritou em 1868 à massa de camponeses reunida na cerimônia de lançamento da pedra fundamental do que viria a ser o Teatro Nacional de Praga.
Mas Smetana, além de cidadão engajado na emancipação política e cultural de seu povo, também era um grande compositor. Por isso, direcionou toda a sua criação para a tradução, em sons, da cidadania checa.
“A música é a linguagem dos sentimentos; a palavra, a do pensamento”, escreveu quando exerceu a crítica musical em Praga. Pois o seu legado musical divide-se em duas vertentes: de um lado, a música vocal, onde canções corais a engajadas com a conquista da nacionalidade convivem com as oito óperas que constituíram o cânone lírico da arte checa posterior; de outro, a música instrumental, onde os domínios pianístico e camerístico lhe serviram como expressões de momentos de sua vida pessoal. E no gênero sinfônico, que constituiu o veículo de sua mais ambiciosa obra orquestral, o ciclo “Má Vlast”, ou Minha Pátria, uma vasta tapeçaria patriótica tecida em seis ambiciosos poemas sinfônicos.
Nomes como Antonín Dvorák, Leos Janacek e Bohuslav Martinu seriam impensáveis sem os alicerces musicais lançados por Smetana, um checo que teve primeiro de lutar pelo uso da língua checa em seu país – falava-se o alemão nas classes sociais mais elevadas, apenas o povão falava a língua checa. Afinal, o país por séculos foi dominado pelos russos, e depois, já no século 19, pelos austríacos.
Bedrich Smetana nasceu em 2 de março de 1824 em Litomysl, na Boêmia, e sua vocação musical manifestou-se bem cedo, por influência do pai Frantisek, músico amador. O piano foi seu primeiro instrumento. Aos 16 anos, depois de assistir a um recital de Liszt, Bedrich decidiu que também seria um virtuose do piano. Os sons das danças típicas que ouviu na meninice e adolescência sempre estiveram presentes em sua vida e obra. Chegou a Praga, em 1843, aos 19 anos. Estudou no Instituto Josef Proksch.
A onda revolucionária que varreu a Europa em 1848 a partir da derrubada de Carlos X na França repercutiu em Praga nos anos seguintes. Ele formou na linha de frente dos que batalhavam pelas liberdades políticas, contra os impostos cobrados pela Áustria e pela independência do país. Seu “Cântico à Liberdade” transformou-se no hino do movimento, que acabou derrotado. A repressão austríaca levou-o ao exílio na Suécia em 1856, onde assumiu a direção da Filarmônica de Gotemburgo por cinco anos, período onde compôs os seus primeiros poemas sinfônicos. Em 1861, de volta a Praga, Smetana ficou agradavelmente surpreso por encontrar uma atmosfera social e política mais liberal, onde o nacionalismo se fortalecia como idéia-matriz. Engajou-se no movimento pela construção de um teatro nacional.
Smetana já não tinha mais nenhuma dúvida. Sua missão como compositor era contribuir para o combate pela liberdade nacional evocando, em suas óperas e obras sinfônicas, o passado glorioso da Boêmia, para insuflar no público a confiança no futuro da pátria.
Pode-se localizar o nascimento da ópera checa no ano de 1866, quando, já na condição de diretor musical do Teatro Provisório, ele regeu a estréia de “A noiva vendida”, sua deliciosa ópera cômica. Pela primeira vez, uma ópera checa tinha um libreto escrito em checo (“Dalibor”, por exemplo, sua primeira experiência no gênero, foi escrita primeiro em alemão e só depois traduzida para o checo; o próprio Smetana cresceu falando alemão e só na adolescência aprendeu a língua nativa de sua terra natal). E mais: passava-se numa autêntica aldeia boêmia, com direito a canções e danças típicas. Na verdade, a aldeia funciona como um microcosmo onde se confrontam os traços originais, não de uma classe específica, mas da população checa inteira. “A noiva vendida” trouxe-lhe tamanha popularidade que em 1868, quando se lançou finalmente a pedra fundamental do definitivo Teatro Nacional, Smetana compôs um “Hino aos camponeses” que adquiriu rapidamente o status de hino nacional.
Em 1874, quando desfrutava de uma popularidade invejável e era o maior nome da música checa em termos nacionais e internacionais, foi cruelmente demitido da direção do Teatro Nacional por causa de uma surdez causada pelo agravamento de uma sífilis contraída ainda na juventude. Seus opositores aproveitaram-se do fato, sem saber que, ao afastá-lo do Teatro, deram-lhe sem querer tempo livre para criar a sua obra-prima.
Depois de praticamente duas décadas inteiramente dedicadas à ópera, Smetana voltou-se para a música instrumental. Compôs várias obras magníficas, como o quarteto de cordas em mi menor, que intitulou “De minha vida”, uma autobiografia musical que culmina, no quarto movimento, com a lancinante repetição da nota mi – a mesma que lhe martelava o ouvido interior desde que a surdez instalou-se nele. E, principalmente, “Má Vlast”, o enorme poema sinfônico que constrói a biografia musical de sua pátria.
Nos anos finais, ainda encontrou forças para lutar pela imposição da língua checa. Em 1882, o fracasso de sua derradeira ópera, “O muro do diabo”, alquebrou-o em definitivo. Fisicamente estava muito fragilizado. Psicologicamente, rompeu-se seu precário equilíbrio. A loucura instalou-se nele quase simultaneamente a seu último e surpreendente ato consciente de internar-se no hospital psiquiátrico de Katerinky. Um gesto corajoso, bem típico deste verdadeiro guerreiro na luta pela afirmação da nacionalidade. Lá morreu em 12 de maio de 1884, dois meses depois de completar 60 anos.
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