Manuel António Pina (1943-2012)
A notável cultura do poeta português Manuel António Pina, permitiu-lhe elaborar seus versos com despojos pilhados em quase toda a tradição literária do Ocidente. Mescladas às palavras do autor encontramos criações de Quevedo, Bob Dylan, Ovídio, letras do grupo de heavy metal AC/DC, pseudo-heterônimos que são paródias dos escritos de Fernando Pessoa, fragmentos de Breton, Laforgue, dos Evangelhos. O título do poema que ouviremos a seguir foi literalmente roubado de um dos maiores poetas românticos da Alemanha, Johann Christian Friedrich Hölderlin, que viveu entre 1770 e 1843. Mas aqui há algo mais do que o risco de balbuciar numa biblioteca babilônica. Pois o fecho do poema amarra toda sua arquitetura e demonstra o domínio do autor sobre a tensão da escrita, e os dois versos finais são dos mais belos já criados, ou ecoados, na língua portuguesa. Ouçamos então, de Manuel António Pina, o poema Metade da Vida.
Manuel António Pina
Metade da Vida
Perdi-me em Hölderlin e achei-me em Dante
no sítio mais distante da estante;
a meio da vida, quando a seara de-
via estar semeada e a casa construída.
Enquanto lia os clássicos e me dava
inutilmente para a melancolia,
Maria Hermínia, a Musa, ávida, deitava
contas à vida, à minha única vida:
faltava-me algures uma Ode (e um Amor Louco)
e, fora isso, lia muito e escrevia pouco;
os tempos iam para a Crítica, e ela seria,
a Musa-Ela-Própria, a minha tão certa secretária.
E por aí fora; que, se não me atasse
por minhas mãos ao Destino, desatinaria
(se não me matasse). Despedi-a.
Não me peças pois Harmonia, irmão leitor, meu semelhante:
pede-me medo. Sob o seu telhado dissonante
fiz o fogo e consumi a forma, e atrás da porta
guardei a minha vida, metade viva metade morta,
e os meus livros, seu cego instrumento.
Igual aos deuses (com pouco me contento),
de livros e silêncio me alimento.
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