Clarice Lispector (1920 - 1977)
No livro Água Viva a escritora Clarice Lispector criou, a partir de textos anteriormente publicados na imprensa e de um manuscrito de 1971 um híbrido de romance, poesia, diário, ensaio filosófico, sem que a obra, entretanto, possa ser reduzida a algum desses gêneros. A autora desestrutura a forma num fluxo inesperado, envolvente e perturbador. As soluções de Clarice são sempre improváveis, forçam uma ruptura dos padrões de leitura, induzem à aceitação de uma voz tão feminina quanto enigmática. Em Água Viva não há propriamente narrativa, mas sim um constante embate com o mistério do tempo, do instante inapreensível. Nessa fugacidade os temas do amor, da morte, da solidão, da espiritualidade, surgem sob luzes inesperadas. Vamos a um exemplo, um dos parágrafos que emClarice Lispector tomam amiúde o aspecto de prosa poética. À falta de título, remetamo-nos às suas palavras iniciais: Nasci dura.
Clarice Lispector
Nasci dura
Nasci dura, heróica, solitária e em pé. E encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza. A feiúra é o meu estandarte de guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual. E desafio a morte. Eu – eu sou a minha própria morte. E ninguém vai mais longe. O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro e cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira. Sou uma árvore que arde com duro prazer. Só uma doçura me possui: a conivência com o mundo. Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. É o mínimo que posso fazer de minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite.
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