Clarice Lispector (1920 - 1977)
O crucial, na arte da escritora Clarice Lispector, seja quem sabe a tentativa da sinceridade absoluta. Uma meta praticamente inalcançável, pois o mistério humano é, por assim dizer, uma selva cerrada, a cujo segredo foram admitidos tão poucos, no correr do tempo, que se contam nos dedos, talvez. O ofício da arte, entretanto, é o de bordejar essa fronteira áspera em busca de passagem. Clarice tinha a percepção da transcendência da tarefa e da exiguidade dos meios que os humanos dispõem, e ela mesma escreveu em certa passagem de Água Viva esta frase: “No entanto estou sendo franca e meu jogo é limpo”. Temos aqui uma autora que, como é de costume entre os autênticos artistas, não perde a capacidade de se espantar com os enigmas das palavras, do pensamento, do processo da consciência, da morte. Ouçamos, como exemplo veemente, um trecho do livro A Descoberta do Mundo, reunião póstuma das crônicas que escreveu para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973. É, como amiúde ocorre com os textos deClarice Lispector, uma prosa poética. Intitula-se Não entendo.
Clarice Lispector
Não entendo
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.
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