Ele frequentou todos os estilos, do nacionalismo ao atonalismo
“Na idade provecta a que cheguei”, escreveu Francisco Mignone nos anos finais de sua vida, “posso afirmar que sou senhor e dono, de direito e de fato, de todos os processos de composição e decomposição que se fazem e usam hoje e amanhã”. Prossegue, na importante carta escrita e enviada em 1980 a Vasco Mariz, o grande musicólogo brasileiro que morreu semanas atrás, dizendo que “Nada me assusta e aceito qualquer empreitada, desde que possa realizar música. O importante para mim é a contribuição que penso dar às minhas obras. Posso escrever uma peça em dó maior ou menor, sem dor nem pejo, assim como elaborar conceitos de música tradicional, impressionista, expressionista, dodecafônica, serial, cromática, atonal, bitonal, politonal e quiçá, se me der na telha, de vanguarda, com toques concretos, eletrônicos ou desfazedores de multiplicadas faixas sonoras. Tudo se pode realizar em arte, desde que a obra traga uma mensagem de beleza e deixe no ouvinte a vontade de querer ouvir mais vezes a obra. Não acontece isso também nas outras artes?”
Este ecletismo proclamado de modo tão enfático por Mignone aos 83 anos faz todo sentido se dermos uma olhada rápida pela carreira criativa do compositor deste mês na Cultura FM.
Ele nasceu em 1897, filho do flautista profissional italiano Alferio Mignone, que chegou a São Paulo em 1896 com a família. Teve só professores italianos radicados em São Paulo: piano com Silvio Motto; harmonia com Savino de Benedictis; e depois piano com Agostino Cantù; casou-se com Liddy, filha de Luigi Chiaffarelli, mestre de Guiomar Novas, Antonieta Rudge e Souza Lima; e em 1920 foi aperfeiçoar-se em Milão, onde estudou composição com Vincenzo Ferroni; voltou ao Brasil nove anos depois, sendo que passou os últimos dois anos na Espanha.
Chegou e logo sentiu o impacto da vaga nacionalista comandada por Mário de Andrade. Corria o ano de 1929. Um ano antes tinha sido publicado o “Ensaio sobre a música brasileira”, livro importante que sistematizou o ideário nacionalista em música. Mário propôs uma guerra pela causa nacionalista na música. Pressionado pelo guru nacionalista ferrenho dos anos 1930, Mignone deixou de lado seu natural pendor italianizante em troca de um mergulho nas fontes africanas para dar cor nacional a sua música – e desse modo receber as bênçãos de Mário.
A forte patrulha exercida pelos nacionalistas, capitaneados por Mário de Andrade mas igualmente por toda a imprensa, acabou por fazer Francisco Mignone capitular ao nacionalismo. Numa carta trazida a público pelo pesquisador Flávio Silva, o compositor escreve o seguinte: “... amparado da cordial e espontânea amizade de Mário de Andrade, embrenhei-me no cipoal da música nacionalista e, também, para não ser considerado (...) uma ‘reverendíssima besta’.”
Enfim, e vamos ver isso diariamente ao longo deste mês, no Rádio Metrópolis e no Tarde Cultura, Mignone foi reprimindo suas raízes.
A ponto de na carta acima citada ele dizer que, conforme a conveniência, era capaz de fazer música de todas as maneiras e estilos possíveis. Nos anos 60, experimentou de fato com a atonalidade e a música serial; nos anos 70, retornou ao nacionalismo.
Mas, no finalzinho da vida, quando já não precisava agradar a ninguém, costumava contar aos jornalistas que o entrevistavam – eu entre eles – estorinhas como esta: quando era jovem e lhe perguntavam qual o compositor mais importante para ele, a resposta era sempre Bach; depois, na maturidade, passara a responder Beethoven. Mas na velhice, ria, liberto de qualquer canga estética, dizia que era Giacomo Puccini mesmo.
Vasco Mariz, o dublê de diplomata e musicólogo, no livro Vida Musical, diz que “em uma noitada íntima, estava Mignone interpretando uma de suas famosas valsas de esquina, e eis que de repente o compositor subitamente emendou acordes puccinianos e a melodia da ária “E lucevan le stelle”, da “Tosca”. Deu murros no teclado e exclamou: ‘Isto é que é a minha música!’ Foi um constrangimento geral e todos procuraram consolá-lo e rebater sua afirmação”.
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