Em texto originalmente publicado no Guia do Ouvinte de setembro de 2000, Carlos Kater fala sobre os 85 anos de H. J. Koellreutter
Em 2 de setembro próximo Hans-Joachim Koellreutter faz 85 anos de idade e o Brasil um pouco mais de 62 anos de Koellreutter. Comentar sobre esse importante músico e suas atividades é tarefa fácil e ao mesmo tempo muito delicada. A quantidade de iniciativas, realizações e pessoas que participaram direta e indiretamente do movimento que ele provocou entre nós é tão numerosa que embora não falte “material” corre-se o risco de tratar assuntos relevantes de maneira ligeira e superficial. E discorrer sobre Koellreutter sem tratar a Música Viva – o movimento musical e formador, o grupo de compositores, os concertos e tantas realizações mais – seria abrir mão de uma visão perspectívica fundamental que impossibilitaria enxerga-lo em sua real dimensão.
A chegada a um país desconhecido
Nascido em Freiburg, na Alemanha, a 02/09/1915, é um jovem flautista e músico entusiasta que desembarca do navio “Augustus” no porto do Rio de Janeiro, em 16 de novembro de 1937. A terra lhe é estranha, o povo e seus costumes absolutamente desconhecidos. Koellreutter havia estudado com vários professores: Gustav Scheck (flauta), C.A. Martienssen (piano), George Schuenemann e Max Seiffert (musicologia), Kurt Thomas (composição e regência coral), tendo ainda frequentado cursos e conferências ministrados pelo compositor Paul Hindemith e também por Hermann Scherchen. Na realidade, este último, renomado regente alemão, não foi apenas um entre seus vários professores, porém, e mais propriamente, o mestre que exerceu sobre a sua formação pessoal profunda e decisiva influência. E foi Scherchen quem cunhou originalmente a expressão “Musica Viva”, inaugurando um movimento musical autêntico e nomeando assim um periódico musical, que editou em Bruxelas de 1933 a 1936.
Com 22 anos ao desembarcar no Brasil, Koellreutter traz o desejo de dar continuidade a essa iniciativa, já enriquecida pelas participações que ele próprio havia tido em grupos com certo ineditismo de proposta (“Círculo de Música Nova” em 1935 e “Círculo de Música Contemporânea” em 1936”). Líder e empreendedor por natureza, ele tratará de adequar e desenvolver suas experiências junto à nova realidade (desafio não minimizado, apesar do ambiente aparentemente favorável e suas proposições no meio musical atenderem a uma necessidade de renovação e dinamismo já expressa em alguns setores).
Mas a nova terra lhe é estranha, o povo e seus costumes absolutamente desconhecido. Ele tinha já ouvido dizer do famoso músico Heitor Villa- Lobos e, segundo consta, foi através de uma anônima dançarina de um cabaré alemão, supostamente íntima do compositor brasileiro, que obteve o contato para encontrá-lo no Brasil.
Quem de fato o acolhe no Rio de Janeiro, porém, é o grande musicólogo, anfitrião incansável, de nome ressoante: Luiz Heitor Correa de Azevedo.
Por um lado, apresenta-o ao pianista Egydio de Castro e Silva, com quem, logo em 1938, realiza uma série de apresentações pelo nordeste do país, no âmbito da Instrução Artística do Brasil. Mais significativo, no entanto é o contato direto que lhe propicia com o núcleo de música Pinguim, na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. Ali assiduamente se encontravam Brasílio Itiberê (jovem compositor e professor do conservatório), Octávio Bevilácqua (crítico musical do o Globo), Andrade Muricy (escritor e critico musical do Jornal do Comercio), Alfredo Lage (membro da alta sociedade e primeiro aluno de Koellreutter no Brasil), Egydio (também compositor) e o próprio Luiz Heitor, entre outros.
Nasce a Música Viva
A partir desses contatos é que nasce então, por obra de Koellreutter, a Música Viva brasileira, cujos primeiros participantes serão justamente estes frequentadores da Pinguim, conforme veremos figurar no boletim Música Viva, publicado dois anos mais tarde (Música Viva n°1, RJ: 1940). Mas será já a partir de 1939 que as atividades significativas do movimento se desenvolverão concretamente, sob a forma de audições, recitais e concertos. Inaugura-se assim um movimento pioneiro de renovação musical, concebido sob o tríplice enfoque: Formação (educação) – Criação (composição) – Divulgação (interpretação, apresentações públicas, transmissões radiofônicas), que integrados terão intensidades proporcionais ao longo de sua existência. A pianolatria, assim como o virtuosismo transbordante de si, o aderismo sonâmbulo às formas e estilos do passado ou descaso lacônico frente à criação de uma música brasileira nova, que já haviam sido criticados contundentemente por Mário de Andrade, continuaram a ser combatidos por Koellreutter. Se as sociedades artísticas e agremiações musicais da época “realçavam o virtuose e o concerto”, Koellreutter e a Música Viva (já em inicio de 41) buscarão “divulgar o compositor e sua obra, principalmente a contemporânea”. Assim, o trabalho frente à nova “realidade em transformação”, adquire importância e ataca (algumas vezes frontalmente) as deficiências do meio pedagógico e artístico de sua época. Os objetivos desse trabalho são explicitados de maneira clara e, lamentavelmente, as problemáticas que visam ecoam ainda em nossa atualidade:
“...despertar – entre os próprios profissionais – o interesse pelos problemas de expressão e interpretação da linguagem musical de nosso tempo.”
“...participar ativamente da evolução do espírito e combater o desinteresse completo pela criação contemporânea que reina entre nós por parte do público como também por parte dos profissionais.”
“...Criar um ambiente próprio para a obra nova, para a formação de uma mentalidade nova e destruir preconceitos e valores doutrinários, acadêmicos e superficiais, está em nosso plano, pois pela arte é que se reconhece o grau de cultura de um país.”
Na realidade, já significativamente em 1° de Maio de 1944, o grupo Música Viva havia concebido e divulgado um dos mais concisos e brilhantes manifestos brasileiros – o “manifesto 1944”, possuindo as assinaturas de Aldo Parisot, Claúdio Santoro, Guerra Peixe, Egydio de Castro e Silva, João Breitinger, Mirella Vita, Oriano de Almeida e Koellreutter.
O movimento produziu ainda publicações regulares de boletins, edições de música, concertos, recitais, audições experimentais e programas radiofônicos veiculados semanalmente na PRA-2, Rádio Ministério da Educação, afora as aulas particulares ministradas por Koellreutter para um contingente de alunos em São Paulo e no Rio.
Foram introduzidas em todas estas oportunidades a divulgação da musica atonal, dodecafônica, serial e produções experimentais diversas, lado a lado com a música nacionalista (brasileira e estrangeira) e a música de várias outras épocas, Idade Média, Renascença, Barroco etc.
Mas se a música esteve tão viva inicialmente no Rio, logo em 1941 inicia-se um movimento paulista, quando Koellreutter começa a realizar cursos particulares na cidade de São Paulo, a exemplo do que já fazia no Rio de Janeiro. A inauguração oficial do movimento paulista só se deu porém em meados de 1944. O grupo de alunos desta safra era integrado por: Gení Marcondes, os jornalistas Ruy Coelho e Alvaro Bittencourt, a família Simon e, possivelmente, Eva Kovach, Lídia Alimonda, Jenny Pereira, Magdalena Nicoll e em seguida também por Nininha Gregori, Damiano Cozzella, Roberto Schnorrenberg, Hans Trostli, Eunice Katunda (que logo virá a integrar o grupo de compositores, junto com Cláudio Santoro, Guerra Peixe e Edino Krieger) e Jorge Wilheim.
Um revitalizador cultural
Sem dúvidas comemorar é sempre bom, festejar Koellreutter ainda melhor. Mas, a meu ver, onde mais sentido pode haver é no brinde ao conjunto de iniciativas e atividades realizadas ao longo de cada um dos anos que ele passou aqui e que geraram um movimento dinâmico e verdadeiramente saudável junto à cultura brasileira (embora mais marcante no Rio e em São Paulo, não apenas nestas capitais). E isto se fez de 1938 a 1957, sob a expressão “Música Viva” e após esta data (com o desaparecimento formal do movimento) com o mesmo espírito que até então havia inspirado e determinado sua trajetória. Sem esta postura – assumida em nome do movimento ou no nome pessoal do inquieto e instigante Koellreutter – talvez muitos de nós estivéssemos ainda a enaltecer, como Siomaras Pongas, valores e conceitos mais afins do ambiente e da cultura musical do final do século XIX, adorando bustos de falsos Beethovens sobre pianos mudos, empoeirados solitariamente em cantos quaisquer.
Ele criou o que podemos chamar de “escola”, buscando por em relevo a capacidade coletiva de uma geração. Uma escola de composição, de pensamento, entre várias escolas concretas (em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Bahia, mas também em Nova Deli e Tóquio), cujos discípulos foram incontáveis. Ele foi criticado e atacado por muitos outros. Isto se compreende. A mesma força que a tantos atraiu, em dado momento se tornou na mesma proporção força negativa. Penso que o que podemos comemorar de melhor hoje é justamente esta dinâmica que gerou tanto movimento, e ao mesmo tempo tanta polêmica, que forçou a tomada de posição de tantas pessoas, que provocou um pensamento e uma reflexão sobre o papel do músico na sociedade atual, sua função mais ampla e sobre este tempo que coabitamos (seja lá a data que tenha): a música nova de todas as épocas, o homem contemporâneo de cada dia.
A fronteira entre as trajetórias da Música Viva e de seu orientador é sutil. Isto porque, de um lado a força da personalidade de Koellreutter e o carisma que exerceu impregnaram fortemente a maneira de ser de muitos daqueles que com ele dividiram ideias, projetos e realizações. De outro, a sedutora proposta de revitalização artístico-cultural do movimento engendrado, criou nele trilhas internas, deixando marcas sensíveis em todas as suas atuações posteriores. Empreendedor e obra fundiram-se nos vários sentidos da expressão música viva: movimento musical, grupo de criação, sociedade artística, programa radiofônico, concertos, audições experimentais, recitais, boletins, cursos, estética... Em última instância, estes foram todos receptáculos de um mesmo conteúdo, de uma mesma ideologia ou filosofia.
O artista e seu tempo
Parte fundamental do fascínio que Koellreutter exerceu sobre seus discípulos e colaboradores deve-se, a meu ver, ao fato dele ter acreditado na existência de algo a mais em cada ser humano, na música, em sua função na sociedade e na própria sociedade em transformação (e a ser continuadamente transformada). Isto não significou apenas transcender os fatos tais como eles se apresentaram na realidade, mas sim criar um sentido capaz de alimentar diversas existências.
“Pergunte-se sempre ‘Por que’?”, “Não se sinta jamais realizado” – com estas colocações instigantes e já clássicas de sua maneira de ser, entre outras, ele procurou revitalizar o papel de cada indivíduo, valorizar sua atuação pessoal e sua participação na transformação do mundo, no surgimento do novo e fortalecendo assim o sentimento de utilidade (coletivo e social).
“...o compositor moderno participa, como qualquer outro cidadão, dos grandes problemas do povo e da humanidade. Por isso penso não ser bastante ao jovem artista preocupar-se unicamente com a sua arte e o seu instrumento, mas sim que o jovem artista deve conhecer a literatura, as artes plásticas, as ciências sociais, a filosofia, a política etc., para poder colaborar ativamente na formação do espírito do povo e da humanidade, por que são os artistas criadores os arquitetos do espírito humano.”
Aí se localiza a essência de uma proposta autêntica, cristalizada, numa fase inicial pelas atividades Música Viva e desde então desenvolvida continuamente por Koellreutter ao longo de empresas subsequentes (experimentando de formas diversificadas o “sentido coletivista da música”). Estimulador, aglutinador, catalizador por natureza, ele pode ser considerado não meramente o professor de intensas e continuas atividades; mas, também, o mais representativo – e avant la lettre – animador sócio-musical de nossa história moderna. Os movimentos por ele insuflados repousam na base das mais significativas iniciativas musicais do país, sejam elas modestas formações de coros ou ambiciosas criações de organismos e instituições, da fundação do movimento Música Viva ou dos Cursos Internacionais de Férias Pró- Arte (Teresópolis/RJ), Escola livre de música (São Paulo/SP), Schola Cantarum, Seminários Internacionais de Música (Salvador/Bahia), tendo sempre à frente o crivo de ex- alunos e/ou do próprio introdutor dessa segunda fase da modernidade musical brasileira. Assim como grande parte dos músicos de relevo no cenário artístico brasileiro, bem como dos grupos corais e/ou instrumentais, espelham em sua formação uma simples influência que seja, quando não uma filiação direta, com a ampla empresa pedagógica instalada pioneiramente por Koellreutter.
A arte musical o reflexo do essencial na realidade...
Ideias são mais fortes do que preconceitos...
Música é vida... ... música é movimento...
Que Koellretteur receba, desta terra relativamente estranha e de um povo ainda pouco conhecido, parabéns pela efervescência de ideias, multiplicidade de produções, dedicação na formação de jovens e todo o dinamismo que direta e indiretamente insuflou em nossa cultura. Mas, por gentileza, ... deixe ainda acessa a chama dessa vela por muitos anos.
(Carlos Kater é musicólogo, compositor e educador. Organizou o catálogo de obras de H.J. Koellreutter. Texto publicado originalmente no Guia do Ouvinte de setembro de 2000)
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