Da adolescência na Alemanha a uma revisão de trajetória por ocasião dos 80 anos de Koellreutter, este documentário biográfico foi produzido a partir de depoimentos do professor, além da participação de alunos e personalidades do meio cultural
Seu nome vem associado a mais importante e radical evolução operada na cultura musical do Brasil pós-Villa-Lobos e, no entanto, ele não se diz um revolucionário. Aos 80 anos, completados este mês, o músico alemão Hans-Joachim Koellreutter (Freiburg, 1915), tampouco se preocupa com a máxima da “posteridade”, um dos dogmas do século. Os anos de vida, a experiência no Oriente (viveu na Índia e no Japão por mais de uma década) resultaram na busca de um ideal artístico e humano que levasse a um encontro complementar entre opostos, à superação de todo o dualismo, de qualquer dicotomia. Contraditoriamente, sua vida tem sido uma sucessão de polêmicas, confrontos, embates – em uma palavra, dualidade. Fez amigos e inimigos, perpetuados involuntariamente em mesma proporção e em distintas localidades do planeta.
Alemão não-judeu, Koellreutter exilou-se no Brasil (onde mais tarde se naturaliza) em 1937, fugindo do nazismo que combatia. Flautista, regente e compositor, aqui se notabiliza como educador e, sobretudo, mentor de praticamente toda a vanguarda brasileira. Seus cursos – livres ou acadêmicos, nacionais ou internacionais – ministrados na Bahia, em Teresópolis, no Rio e em São Paulo, o movimento e o manifesto Música Viva, que deflagrou no ano de 1950, marcaram época em seu tempo e ramificaram ideias por muitos anos mais. Entre as décadas de 1960 e 1970, quando viveu em Nova Deli e Tóquio em missão pelo Instituto Goethe, sofreria tremenda transformação no contato com a cultura oriental – em um caso, mais precisamente revelada nos princípios da improvisação e, em outro, na síntese ideogâmica. A partir de então, passa a relativizar toda a ideologia hegemônica do Ocidente.
Homem de compromissos (“jamais concessões”), Koellreutter radicalizou o ensino, a visão de arte, a compreensão do mundo. Hoje, em plena era de integração, mais que nunca professa uma maior afinidade de funções entre arte e vida cotidiana.
“Só então se pode compreender que o TODO da cultura é holístico”. Anti-positivista e anti-mecanicista, há muito trocou Descartes pelos postulados da Física Moderna, ciência que o tem atraído e influenciado decisivamente como músico – e talvez muito mais do que todo o conjunto de obras contemporâneas nas ultimas décadas. Artistas desde os anos 1960 perseguem os princípios do que se chama “uma estética relativista do impreciso e do paradoxal”. Uma metafísica pós-einsteiniana, se podemos dizer, em que os universos macro e micro covergem “de um misticismo científico para um comportamento artístico”.
Sua proposta é por uma Gestalt em permanente mutação: trocou a partitura pela planimetria diagramática o livre arbítrio do interprete exercendo papel fundamental na realização a obra. Como músico, interessa-se tanto por aspectos da linguagem de ordem puramente técnica e formal (situa-se, seguramente, entre os mais rigorosos e categorizados professores de contraponto e harmonia funcional), quanto por todo o fator extramusical que possam afetar o fazer, a criação artística seja tecnologia, a sociologia, o contexto geográfico-cultural, ou mesmo, a psicologia. Antes de tudo, analisará o papel do individuo na sociedade – sua orientação, os fundamentos de que provém dentro dos quais sua obra se desenvolve.
Tal como seus mestres mais importantes na Alemanha (Kurt Thomas e Hermann Scherchen, ambos regentes famosos), Koellreutter não é uma personalidade fácil. E, ao mesmo tempo, é fascinante. Afeta profundamente aqueles com quem convive, e mesmo seus dissidentes ou detratores não escapam impassíveis ao seu discurso. “Ele desperta a música que existe dentro de cada um”, é o que se diz entre seus discípulos. Com certeza, os faz mais cultos, mais críticos, mais conscientes e, em profundo sentido... Mais musicais (o próprio Tom Jobim, que foi aluno de Koellreutter em piano, harmonia e contraponto “ainda menino”, jamais deixou de citar, em entrevistas biográficas, a decisiva influência do professor alemão).
Sua visão de música – que eleva a muitas dimensões e analisa sob diferentes perspectivas – é sempre original e de um poder de síntese incomparável. Seu pensamento, sua lógica, sua percepção da arte resultam de um estudo e uma penetração sistemática nos assuntos de seu interesse. Em nenhum momento pratica ou admite qualquer diletantismo. Para ele, arte é sinônimo de rigor, talento e disciplina somados. Crítico, busca o significado de uma obra de arte verdadeira no grau de informação que contém. Analítico, entende que a história avança por marcos de ruptura estética ou de percepção que espelham o desempenho da sociedade.
Para quem considera ainda que a vanguarda sempre surge associada a “grandes ideias” (como refletor ou propulsor das mesmas), apesar de assim tão fortemente engajado com a contemporaneidade, Koellreutter não crê que sua produção artística se relacione com alguma tendência particular da música contemporânea. “Escrevo ensaios, e não obras”, afirma. Ocupado principalmente com a pesquisa e a investigação científica e com a difusão de um pensamento novo, é responsável pela formação de várias gerações de músicos, compositores e interpretes no Brasil: Claúdio Santoro, Guerra- Peixe, Eunice Catunda, Edino Krieger, para citar uns poucos nomes de autores; Isaac Karabtchevsky, Júlio Medaglia, Diogo Pacheco, Benito Juarez, entre os maestros.
Nos anos 1960, toda uma geração que assinaria o manifesto Música Nova – encabeçado por Gilberto Mendes e Willy Correa de Oliveira – revê as ideias de Koellreutter implantadas na década anterior: ele teria sido modelo vivo da chamada “arte de invenção”. Embora admirador confesso de Mário de Andrade, de quem elogiava “o caráter integrador universal”, foi crítico feroz do nacionalismo brasileiro tardio: são históricos e já enciclopédicos seus debates travados publicamente como Camargo Guarnieri no início da década de 1950, dividindo opiniões e mobilizando forças apaixonadamente (Patrícia Galvão, a conhecida Pagu, quando jornalista do Fanfulla, por várias ocasiões fez a defesa do músico alemão). Três décadas depois, numa análise menos calorosa mas igualmente crítica e racional do produto musical brasileiro contemporâneo, ele o qualificou simplesmente: “Uma espécie de pluralismo de tendências estilísticas, geralmente de caráter epigonal, isto é, seguindo e até imitando os compositores brasileiros ou estrangeiros do século XX”.
Na thesis e na práxis, Koellreutter optou radicalmente pelo Brasil – daí a autoridade com que participa e interfere na cena artística nacional. “O Terceiro Mundo é mais adiantado”, afirma. “Mais livre, menos preconceituoso, mais criativo” (e não se refere ao racionalismo, mas no potencial para superá-lo). Em seu ideário globalizante, vê hoje a afinidade de pensamentos entre a vanguarda ocidental contemporânea e as grandes culturas místicas originárias – e isso é, a seu ver, um dos maiores acontecimentos sócio-culturais do século. “Três mil anos de música moderna”, exulta, com a propriedade de quem percebe a história a partir da evolução do conceito de tempo a que chegou o ser humano em diferentes civilizações.
Consciente daquilo que tomou por missão em sua carreira, Koellreutter em poucos momentos interrompeu as atividades pedagógicas que ainda hoje lotam uma agenda concorrida. Dividido basicamente entre São Paulo e Rio (a Av. São Luís e a Urca), visita com certa frequência outras regiões do país e ocasionalmente viaja ao exterior. Recentemente esteve no Oriente. Na volta, passando pela Alemanha, ao proferir palestra em Berlim, provou a uma plateia mista que aprendeu a filosofar em muitas línguas nessas ultimas décadas.
Agora, por ocasião dessa grande efeméride dos seus 80 anos, não seria diferente: escolheu passar o aniversário no Brasil, em meio a uma serie de comemorações, solicitações... E muito trabalho. Entre outras atividades, há concertos e eventos em Porto Alegre, três meses intensivos de ateliês e aulas abertas no Centro Experimental de Música do Sesc em São Paulo (que também lança seu novo disco), a visita do Presidente Mundial do Instituto Goethe em sua homenagem.
A Cultura FM reservou o 1° dia do mês de setembro a uma programação especial, toda ela orientada pelo maestro e professor, um de nossos mais notáveis colaboradores. Em dezoito horas de programação – das 6 às 24 horas – tomaremos contato com a História da Música Ocidental na perspectiva de H.J. Koellreutter – do cantochão dos primeiros séculos ao nascimento da Modernidade, com Debussy.
Uma nova história da música por ele proposta (que inclui até suas observações acerca do papel da improvisação na música de jazz), é delineada a partir do que considera os “pontos de mutação” decisivos na evolução das artes e do homem (a citação do físico F. Capra não é casual).
Paralelamente, um documento sobre sua vida será levado ao ar no dia de seu aniversario (2 de setembro) e, durante todo o mês, em horários especiais, veicularemos uma série de programas reservados à sua obra e à difusão de suas ideias. Ainda em reapresentação, os projetos por ele idealizados especialmente para a Cultura FM nos últimos dez anos: Música de leste a oeste (12 capítulos), Ouvido e consciência (13 capítulos), Stravinsky & Picasso: um ensaio paralelo (cinco capítulos) e a edição inaugural de O tempo e a luz.
Não se estranha que uma das ultimas composições de H. J. Koellreutter, que o público ouve em novembro na Bienal do Rio, intitula-se Panta Rhei (Tudo Flui – Heráclito).
(Regina Porto, produtora e musicista, foi diretora da Cultura FM. Texto originalmente publicado no Guia do Ouvinte de setembro de 1995)
Ficha técnica:
Roteiro e direção: Vera Lúcia Melo, Roberto D'Ugo Jr. e Julio de Paula
Produção: Adriana Braga e Viviana da Silveira Morilla
Locução: Hélio Vaccari
Sonoplastia e montagens: Sebastião Marciano, Osvaldo Silva e Jonas Bicev
Trabalhos técnicos: Getúlio Fernandes e Mário César Racanicchi
Apoio de produção: Carlos Alberto Marques Miguel e Moacir Ligabo Júnior
Idealização e supervisão: Irineu Guerrini Júnior
Coordenação: Regina Porto
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