No primeiro programa produzido na Cultura FM com Koellreutter, ele fala sobre o grande reencontro das culturas musicais do Ocidente e do Oriente
Trinta anos depois...
Conheci Koellreutter em 1985, apresentado por Regina Porto, na época sua aluna e produtora da Cultura FM. Eu já havia assistido a uma ou duas palestras suas; ainda na adolescência tinha lido seu livro Jazz Harmonia (sim, também sobre esse assunto ele escreveu!), mas era a primeira vez que tinha um contato pessoal e profissional com o mestre de tantos compositores brasileiros. Eu dirigia as emissoras Cultura AM e FM, e íamos realizar uma primeira série de programas por ele concebidos – Música de leste a oeste: o grande reencontro das culturas musicais do Ocidente e do Oriente. Por que “reencontro”? A ideia básica que Koellreutter procurava disseminar podia ser assim sintetizada.
As concepções da realidade, tanto do Ocidente como do Oriente, até a Idade Média, estavam carregadas de religiosidade e misticismo. A partir da Idade Moderna, o Ocidente – a Europa, especialmente – desenvolveu uma concepção do mundo cada vez mais racional e científica, enquanto que o Oriente permanecia centrado na religião e no misticismo. Mas no século XX, as culturas dessas duas partes do planeta estavam se reencontrando, e a música era um campo onde essa reaproximação, base de toda a série de programas, podia ser apontada de maneira muito vívida, com numerosas ilustrações, especialmente por alguém como Koellreutter.
De fato, se o seu nome no Brasil, durante muito tempo, ligou-se ao trabalho de divulgação de uma técnica de composição tida como excessivamente racional pelos seus críticos – o dodecafonismo – as suas experiências no Oriente foram fundamentais para o desenvolvimento da sua obra de compositor e professor. Representando o Instituto Goethe, do seu país natal, Koellreutter viveu na Índia de 1965 a 1969. Nesse país, ele pode embeber–se de uma cultura que tem fascinado tantos ocidentais. Em certa ocasião, de acordo com uma entrevista publicada na Folha de S. Paulo em 7 de março de 1999, ele levou o seu compatriota Karlheinz Stockhausen ao rio Ganges, quando este visitava aquele país pela primeira vez. “Ele naturalmente queria conhecer o lugar... me pediu para fazer uma visita à nascente do Ganges. Foi uma experiência de impacto, nos planos místico, intelectual e da música de vanguarda”. Foi outro compositor europeu que se banhou na cultura indiana, com a ajuda de Koellreutter.
Da Índia, foi para o Japão, onde dirigiu a filial japonesa do mesmo Instituto até 1974. Essa experiência oriental, que durou cerca de dez anos, tornou-o familiarizado, entre outras coisas, com a música microtonal, o zen-budismo e o hinduísmo. A sua racionalidade europeia estava definitivamente temperada pelas culturas místicas do Oriente, que resultaram na concepção de uma “estética do impreciso e do paradoxal”, como Koellreutter a chamava.
“Impreciso” e “paradoxal” não são conceitos estranhos à física quântica. Um elétron é uma onda ou uma partícula? A definição depende do observador, do mesmo modo que para Koellreutter, o resultado de uma composição musical dependia das preferências pessoais de cada um de seus alunos. Lembro-me que ele citava, ao menos num programa, o físico austríaco Fritzjof Capra, autor de um livro pioneiro – O Tao da Física: um paralelo entre a física moderna e o misticismo oriental, de 1971, que foi seguido de muitos outros.
Tive o privilégio de produzir Música de leste a oeste e de entrevistá-lo no decorrer dos programas e lembro-me que ele, talvez devido às suas experiências anteriores em rádio no Brasil, que remontavam aos anos 1940, ficou um tanto admirado quando percebeu que o produtor/entrevistador dos programas tinha alguma cultura musical e sabia ler partituras – algo banal no campo radiofônico de países mais avançados – mas que aqui, naquela época mais do que hoje – era coisa rara.
Num dos nossos contatos fora do estúdio, acabei visitando-o em sua residência, num daqueles magníficos apartamentos da Avenida São Luis, no centro de São Paulo. Lembro-me de uma sala muito ampla, com um piano de cauda tomando apenas um dos seus cantos.
Em 1995, ocupei novamente, desta vez por breve período, a direção das emissoras Cultura AM e FM. Naquele ano, Koellreutter estava completando 80 anos, e a Cultura FM elaborou uma extensa programação, composta de programas inéditos e reprises, para comemorar o evento. Num certo dia fui avisado que ele tinha chegado ao estúdio para uma gravação. Fui até lá para cumprimentá-lo, e ele se levanta para me cumprimentar! Ora, Koellreutter, já bem idoso e consagrado, levantando-se para cumprimentar a mim, na época ainda relativamente jovem e pouco conhecido! Logo me apressei em dizer "Por favor, sente-se, professor!", e começamos a lembrar da produção da sua primeira série de programas, dez anos antes, que iria ser reapresentada.
Música de leste a oeste foi parte de um movimento de renovação na Cultura FM que havia começado em 1983. Parte muito importante, que agora será novamente oferecida aos ouvintes da emissora. Para os mais antigos, uma oportunidade para reouvir essa preciosa série; para os mais jovens, talvez um primeiro contato com uma das figuras mais fascinantes da música brasileira do século XX.
(Irineu Guerrini Júnior foi diretor da Cultura FM e aceitou gentilmente o convite para escrever este texto)
Ficha técnica original:
Entrevista e produção: Irineu Guerrini Júnior
Sonoplastia: Geraldo Roberto
Locução: Hélio Vaccari
Ano da primeira exibição: 1985
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