O Beethoven do século 20
Gustav Mahler (1860-1911) é o Beethoven do século 20. Suas monumentais nove sinfonias constituem um Himalaia musical perseguido por todos os maestros e orquestras sinfônicas do planeta. Os músicos testam-se e impõem seu talento interpretando Mahler. O público encontra nelas, finalmente, o que o compositor desejava ao escrevê-las: “Uma sinfonia deve ser como o mundo. Abranger tudo”. Uma posição ímpar, ocupada durante um século e meio, até os anos 1950, pelas nove sinfonias de Beethoven.
Ao contrário do autor da “Sonata ao Luar”, que desfrutou imenso prestígio em vida, Mahler foi um ser humano atormentado. Era, é certo, celebridade internacional, mas não por causa de sua música, e sim como maestro talentosíssimo. Tinha fama de “compositor de verão”, ou seja, o mundo sabia que ele só compunha durante as férias de verão, entre julho e setembro de cada ano, no intervalo de descanso de suas importantes atribuições como maestro da Ópera e da Filarmônica de Viena, na década entre 1897 e 1907, período em que compôs cinco de suas nove sinfonias.
“Sei muito bem que como compositor não terei um reconhecimento em vida. Espero este reconhecimento para mais tarde, quando eu já estiver morto. É a distância necessária para a adequada avaliação de um fenômeno como o meu”. A distância, no caso, mede-se em meio século. Apenas nos anos 60, o maestro norte-americano Leonard Bernstein gravou pela primeira vez as sinfonias e os ciclos de Lieder sinfônicos.
Parece milagre. Num estalar de dedos, Mahler tornou-se imensamente popular. O cineasta italiano Luchino Visconti fez em 1971 o belíssimo filme “Morte em Veneza”, baseado no romance curto de Thomas Mann, realizando o desejo do escritor, que quis retratar Mahler no personagem pintor Gustav Aschenbach, dando-lhe até o prenome do compositor. Na trilha sonora, o “Adagietto” da Quinta Sinfonia, tão popular hoje quanto a quinta e a nona de Beethoven. Três anos depois, outro cineasta, o britânico Ken Russell, retratou o compositor em “Mahler”.
O fato é que nenhum outro compositor exerceu maior influência sobre a música do século 20. Ao contrário de Beethoven e Wagner, por exemplo, que se dedicaram, respectivamente a absorver o sofrimento universal ou modificar os valores sociais e artísticos, Mahler apenas buscou na música soluções espirituais para seus problemas pessoais. Como escreve Norman Lebrecht, “desde sua primeira sinfonia ele mergulhou em experiências e traumas privados – brutalidade interior, desamparo, alienação --, perseguindo dentro de si mesmo remédios para a condição humana”.
“Ultrajantemente moderno” e “inocentemente ultrapassado” foram duas das acusações mais freqüentes à obra de Mahler. O compositor francês Vincent d’Indy, seu contemporâneo, chegou a escrever que sua música possui “a banal complacência de uma sentimentalidade de costureira”. E o motivo é até certo ponto objetivo. Mahler usou todos os tipos de música que compunham o quadro sonoro de seu tempo, sem respeitar hierarquias. Tanto valia brincar com a conhecidíssima canção folclórica “Frère Jacques” (na Primeira Sinfonia), com a poesia chinesa (A Canção da Terra) ou fazer irromper o som de bandinhas militares em momentos solenes de suas sinfonias – quebrando hierarquias, derrubando barreiras entre música culta e música popular.
Ele dedicou todas as suas forças a apenas dois gêneros: o lied e a sinfonia. Mais do que isso. Ele os mistura de modo genial. Há movimentos vocais em várias sinfonias (segunda, terceira e quarta, com textos da antologia “A trompa maravilhosa do menino”, do início do século 19). Além disso, os Lieder eines fahrenden Gesellen são citados na Primeira Sinfonia; os Wunderhorn Lieder percorrem da segunda à sétima sinfonias; e os Ruckert Lieder se intrometem em quatro sinfonias (da quarta à sétima). Em tempo: ao contrário das canções de Schubert, por exemplo, seus lieder são sempre para voz e acompanhamento sinfônico.
É provavelmente por isso que Theodor Adorno, filósofo e estudioso da música do século 20, qualifica as sinfonias de Mahler como “música definida como romance”. Isto é, mesmo quando não há texto explícito, sua música sempre quer ‘contar’ uma história. E, como Kafka, lembra Marc Vignal, outro pesquisador, Mahler “serve-se dos aspectos mais banais para dizer as coisas mais terríveis”.
Este é o compositor deste mês na Cultura FM. Diariamente, no Rádio Metrópolis e no Tarde Cultura, vamos ouvir trechos de suas mais belas obras. E entender por que ele é tão atual, hoje, em pleno século 21.
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