Um talento múltiplo sem fronteiras
“Coloque o que quiser acima e abaixo da melodia. É sempre a melodia que conta”
Astor Piazzolla, Egberto Gismonti, George Gershwin, Leonard Bernstein, Aaron Copland, Quincy Jones, Michel Legrand, Philip Glass, Daniel Barenboim, Almeida Prado, John Eliot Gardiner e Elliott Carter. Todos eles têm algo em comum: todos estudaram na França com Nadia Boulanger (1887-1979), “a mais influente professora desde Sócrates”, segundo um compositor contemporâneo que também passou por suas classes de análise e composição, mantidos por ela por mais de 60 anos.
Compositora, organista e regente, professora da Escola Normal de Música e do Conservatório de Paris, Boulanger fundou e dirigiu o Conservatório de Fontainebleau. A Piazzolla, aconselhou que desistisse de suas aulas e mergulhasse no que tinha de melhor, a reinvenção do tango, que de certo modo ela previu. Um ex-aluno brasileiro, o compositor José Antonio de Almeida Prado (1943-2010) sintetizou seu ensino numa carta emocionada que lhe enviou em 1973: “Começo a colher os frutos do que a senhora plantou no meu coração. A harmonia, a ordem, a fantasia, a escuta, a atenção”.
Harmonia, ordem, fantasia, escuta, atenção. Todas estas virtudes estão presentes em um dos alunos preferidos de Mademoiselle Boulanger: Michel Legrand, o compositor deste mês na cultura FM. É um tributo e um modo de mostrar a incrível versatilidade de sua arte, no momento em que ele nos deixa – morreu no último dia 26 de janeiro, alguns dias antes de completar 87 anos, que faria no dia 24 de fevereiro.
Menino-prodígio, foi admitido no Conservatório de Paris aos 10 anos e medalha de ouro em harmonia e composição aos 16. Foi lá que estudou composição com Nadia. E resume assim a melhor lição que aprendeu: “Ela sempre me falava: ‘Coloque o que quiser acima e abaixo da melodia, mas, aconteça o que acontecer, é sempre a melodia que conta’. De minha parte, a melodia é uma amante à qual sempre serei fiel”. Em outra ocasião disse que “um belo tango vale para mim mais do que algumas óperas de Wagner”.
Provocações à parte, Legrand é músico de exceção. Conquistou três Oscars em mais de 150 trilhas sonoras, incluindo obras-primas como “Viver a Vida” (1962), dirigido por Jean-Luc Godard, e “Os guarda-chuvas do amor” (1963) com Jacques Demy. Em “Crown, o Magnífico” (1968), Legrand inverteu os papéis, conta João Máximo no excelente livro “A música no cinema”: o diretor Norman Jewison tinha 5 horas de filme e não sabia como cortar para uma duração comercial. Legrand propôs compor a música pensando nos trechos que lhe parecessem fundamentais para o romance entre Steve McQueen e Faye Dunaway. Depois Jewison editaria em função da música. “Por menos crível que seja”, escreve Máximo, “foi mesmo assim que se chegou aos 102 minutos com os quais o filme seria visto nos cinemas”.
Mas Legrand é muito mais. Excepcional pianista de jazz, tocou e gravou com vários dos mais notáveis jazzmen modernos, incluindo Miles Davis. Como arranjador, conquistou os EUA aos 26 anos, com um LP contendo canções sobre Paris (“I Love Paris”) do qual participaram os maiores músicos de jazz daquele momento – além de Miles Davis, participaram John Coltrane, Bill Evans, Phil Woods, Ben Webster, Hank Jones, Major Holley e Paul Chambers, entre outras feras. Foi seu passaporte para o mundo do jazz. Hollywood seria conquistada na década seguinte.
Das lições de Mlle. Boulanger ele jamais esqueceu. Por isso, de vez em quando revisitava a música clássica. Em 1994 gravou dois CDs de piano solo: um com as peças excêntricas de Erik Satie (1866-1925), o “enfant terrible” da música francesa das primeiras décadas do século 20; o segundo é um panorama da música norte-americana no século 20, de Samuel Barber a Aaron Copland, de Scott Joplin a Gottschalk e a Amy Beach, Gershwin; e os experimentais Conlon Nancarrow e John Cage.
Em 2018, ele se lançou a sua última aventura “clássica”: um CD ambicioso recém-lançado (Warner), com dois concertos com orquestra: um para piano em que, aos 85 anos, esbanjou virtuosismo e sensibilidade também como solista; e um concerto para violoncelo, com Henri Demarquette, francês de 46 anos. Em ambos, são acompanhados pela Filarmônica da Radio France, regida por seu novo titular, o finlandês Mikko Franck, de 38 anos.
No ar de segunda a sexta-feira dentro do Rádiometrópolis (9h) e Tarde Cultura (15h)
Apresentação: João Marcos Coelho
Produção: Bruno Lombizani
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