Ele compôs um monumental ciclo de nove sinfonias hoje decisivas na vida musical do planeta
Em 1888, os restos mortais de Beethoven e Schubert, que estavam no cemitério de Währing, em Viena, foram exumados e transferidos para o cemitério central da cidade, batizado de “panteão dos artistas”. Um senhor de 64 anos, nariz adunco e já encurvado, acompanhava todos os preparativos da cerimônia. Aproveitando uma distração dos médicos, pegou nas mãos o crânio de Schubert e ajoelhou-se diante dele num gesto de veneração e piedade filial. Em seguida, atirou-se na cova de Beethoven e de lá saiu com o crânio do seu ídolo; perdeu até a lente de seu pince-nez.
Obsessivo pelos números, contava os postes ao andar nas ruas; parava no meio da rua para contar as folhas, uma a uma, de uma árvore; e quando perdia a conta, retomava do início. Era, portanto, um numeromaníaco. Quanto às mulheres, outra preferência no mínimo estranha: jamais casou-se, mas só tentou aproximar-se de mulheres sempre muito mais jovens do que ele. Não se casou. Permaneceu só até a morte, em 11 de outubro de 1896.
Estes episódios protagonizados pelo compositor austríaco Anton Bruckner são, além de comoventes, engraçados e bizarros, também simbólicos: ele era profundamente religioso (construiu seu metiê musical como organista na Igreja de Saint-Florian por duas décadas), curtia uma intensa neurose necrófila (não perdia uma execução pública nem detalhes de assassinatos) e só imaginava seu trabalho como compositor numa linha de continuidade com Beethoven e Schubert. E, de fato, não foi à toa que Richard Wagner o considerava o único herdeiro digno de Beethoven. Pois Bruckner, em seus imensos afrescos orquestrais – ele escreveu nove monumentais sinfonias e outras duas sem numeração --, leva avante algumas das principais idéias do Beethoven dos últimos quartetos e sonatas: a ampliação das formas tradicionais, o alongamento de movimentos que mais parecem preces ou meditações. Daí os enormes, magníficos, adágios de suas sinfonias, sobretudo as três últimas.
Estamos diante de um formidável compositor cuja obra, de certa forma, fica encoberta, principalmente nas últimas décadas, pela receptividade muito maior que recebeu outro imponente edifício sonoro, o das nove sinfonias de Gustav Mahler (1860-1911), também vienense e contemporâneo de Bruckner.
Bruckner avança em relação a Brahms e adota como guru e modelo técnico Richard Wagner. De certo modo, antecipa o processo composicional de Mahler e contém em germe até as melodias de timbres de Anton Webern. É, portanto, o elo de ligação mais forte entre a música clássica tradicional e a revolução da música atonal que explodiria nas primeiras décadas do século 20 com Schoenberg, Berg e o citado Webern.
Como bem acentua Lauro Machado Coelho na primeira biografia brasileira, lançada em 2009 (Editora Algol), “Bruckner era realmente um homem externamente simples. Mas sua música não é. E nem tampouco os traços de caráter de um indivíduo espiritualmente muito complexo”. O problema, detecta com justiça Machado Coelho, “é a baixa autoestima”. Um sentimento sobretudo social. Anton, caipirão do interior, buscou a vida toda legitimar-se diante da sofisticada Viena da segunda metade do século 19; mas jamais teve dúvida em relação a sua música. As dificuldades para a execução de sua música sinfônica, porém, foram tamanhas que ele concordava com as observações mais estapafúrdias de terceiros. A tal ponto que hoje fica difícil estabelecer as partituras corretas de cada uma de suas sinfonias.
Este é o compositor deste mês na cultura Fm.
No ar de segunda a sexta-feira dentro do Rádiometrópolis (9h) e Tarde Cultura (15h)
Apresentação: João Marcos Coelho
Produção: Bruno Lombizani
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