Sua obra permanece decisiva, 150 anos após sua morte
“Romântico? Não sei o que isso significa. Eu sou um clássico. Por clássico, entendo uma arte jovem, vigorosa e sincera, séria, apaixonada, amante das belas formas, perfeitamente livre; tudo aquilo que já foi produzido de grande, de corajoso: Gluck, Beethoven, Shakespeare”. A frase de Louis Hector Berlioz é bem característica de sua criação musical empenhada, quase sempre excessiva e de inventividade superior. A negação, no caso, pouco significa, já que Berlioz encarnou nos últimos dois séculos o protótipo mesmo do artista romântico, ao lado de Victor Hugo e Eugène Delacroix. Foi Théophile Gautier quem juntou o compositor, o romancista e o pintor no que chamou de santa “trindade da arte romântica”.
Existe alguma coisa mais romântica do que se apaixonar por uma mulher, declarar-se a ela, não ser correspondido, envenenar-se e vomitar por duas horas, terminando por compor uma sinfonia só para ela? Tudo isso aconteceu em Paris, em 1827, quando, ao assistir a uma performance da atriz irlandesa Harriet Smithson de uma peça de Shakespeare, Berlioz, então com 24 anos, teve uma paixão fulminante (não se sabe se por ela ou pelos personagens shakespeareanos que Smithson representava no palco). Rejeitado, compôs e fez estrear em 1830, na presença da sua amada, a “Sinfonia Fantástica”, construída em cinco movimentos, por onde perpassa, todo o tempo, um tema que chamou de “idée fixe”, idéia fixa.
Berlioz foi um dos criadores mais fecundos do século 19, e um dos que maior descendência estilística tiveram. Ele rasgou um veio muito rico, o da música de programa, que desembocaria nos poemas sinfônicos de Liszt e de Richard Strauss, para ficar apenas nos dois exemplos mais notáveis. Mas, por outro lado, foi dos poucos que souberam tirar incríveis lições para a música levando em conta o divisor de águas que foi Beethoven. Assim, por exemplo, é quase sempre difícil classificar as obras de Berlioz. O que é “Romeu e Julieta”, por exemplo? A obra prevê solistas, coro e orquestra, mas não é um oratório, nem uma ópera. Simples, esclarece o compositor: é uma “sinfonia dramática”.
Mas, como com Berlioz caminha-se sempre em terreno minado e cheio de surpresas, os solistas narram a história, não encarnam os personagens do título. O movimento central da obra, a “Cena de Amor”, conta o clímax de Romeu e Julieta somente por meio da música sinfônica, sem palavras, sem canto. Berlioz explica demoradamente o inesperado. Vale a pena citar na íntegra: “Se os duos de amor e de desespero são confiados à orquestra, as razões são inúmeras e fáceis de se entender. Em primeiro lugar, trata-se de uma sinfonia, e não de uma ópera. Depois, os duos deste tipo foram tratados vocalmente mais de mil vezes, e pelos maiores mestres. Era prudente e curioso tentar outro modo de expressão. É também porque a sublimação deste amor tornava sua reprodução tão perigosa para o músico, se ele utilizasse sua fantasia no sentido positivo das palavras cantadas, que recorri à língua instrumental, língua mais rica, mais variada, menos determinada e, por esta condição vaga mesmo, incomparavelmente mais poderosa neste caso”.
Desde os inícios no Conservatório de Paris, ainda como aluno, Berlioz andou às turras com o então diretor da escola, o italiano Cherubini. Comprava briga com muita gente, o que tornou seu caminho particularmente difícil. Concorreu três vezes ao Prêmio de Roma – concedia-se uma bolsa de estudos em Roma ao vencedor – para conquistá-lo. Mas não hesitou em chamar repetidas vezes os franceses de “cretinos”. “Não há nada a fazer neste país atroz”, fulminou após o fracasso de “A condenação de Fausto”. “A França está riscada de meu mapa musical. Neste país, tudo está morto, salvo a autoridade dos imbecis”.
Se em seu país não era reconhecido, decidiu conquistar o mundo. Entre 1831 e 1868 (ele morreu em 8 de março de 1869, há exatos 150 anos), Berlioz fez onze extensas viagens e permaneceu por vários anos em inúmeras cidades. Em praticamente todos os lugares – de Londres a São Petersburgo, de Hamburgo e Berlim a Moscou, Roma e Viena – foi recebido como um deus. Paganini, o diabólico virtuose do violino genovês que lhe deu uma fortuna em dinheiro para a composição de “Haroldo na Itália”, obra para viola e orquestra, ajoelhou-se diante dele e beijou-lhe as mãos em público dizendo “Beethoven morreu, só Berlioz é capaz de fazê-lo reviver”.
Como crítico musical, também foi radical em seus ódios e paixões. Inaugurou, ao lado de Robert Schumann, uma ilustre linhagem do exercício honesto, sincero e competente de crítica musical (linhagem que incluiu Bernard Shaw, Virgil Thomson e Charles Rosen, para ficar apenas em alguns dos mais notáveis destes dois séculos). É muito difícil, confessa ele numa crítica para o “Journal des Débats”, “falar hoje de um grande mestre e amanhã de um cretino com a mesma seriedade, na mesma língua!”
Hector Berlioz prefigurou, em seu tempo, o calvário dos compositores contemporâneos neste início de século 21. Em seu tempo, gostavam mais do que escrevia como crítico musical do que de suas obras musicais. Mendelssohn foi um destes amigos que ficou horrorizado com sua “Sinfonia Fantástica”. Música nova, note-se, sempre é recebida com um choque pelo público.
Este é o compositor deste mês na Cultura FM, em tributo a este criador musical decisivo do século 19 que até hoje espalha sua influência não só entre compositores, mas também entre maestros e aprendizes de orquestração.
No ar de segunda a sexta-feira dentro do Rádiometrópolis (9h) e Tarde Cultura (15h)
Apresentação: João Marcos Coelho
Produção: Bruno Lombizani
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