Se tivesse vivido um século mais tarde, o endereço de Richard Wagner não seria Bayreuth mas sim Beverly Hills; e ele não escreveria óperas mas trilhas sonoras para filmes-catástrofe tipo “Inferno na Torre”.
Cena do filme "Apocalypse Now", de Francis Ford Coppola
Fevereiro é mês do Oscar. A mídia só fala de cinema, a TV e os jornais repetiram à exaustão os nomes dos candidatos à estatueta, massacraram nossos ouvidos e olhos tantas vezes que cada um de nós, sentadinho no sofá de casa, acaba se sentindo parte (virtual) da festa. No domingo passado, foi um tsunami de 1 bilhão de pessoas que assistiu à “cerimônia”. Aprontei-me a caráter para assistir à “festa do cinema”. Vi as entrevistas idiotas no “red carpet”, as piadas ainda mais estúpidas do apresentador Ted Bear... e, principalmente, lembrei de Richard Wagner, a maior efeméride da música clássica de 2013, quando festejamos seus 200 anos de nascimento. Nos tempos dele, o cinema era melhor. Epa!, como? O cinema ainda não havia sido inventado. Ora, Wagner antecipou tudo isso que se celebra de modo tão medíocre em Hollywood. Duvidam? O livro “Wagner and Cinema”, que li há três anos e me rendeu um artigo suculento, publicado em 2010, é a prova provada do que estou dizendo. Deem uma lida nele e vejam se não tenho razão:
Se tivesse vivido um século mais tarde, o endereço de Richard Wagner não seria Bayreuth mas sim Beverly Hills; e ele não escreveria óperas mas trilhas sonoras para filmes-catástrofe tipo “Inferno na Torre”. A frase do jornalista Martin van Amerongen em “Wagner, a case history”, 1983, vai além da sacada. É perfeita para mostrar que, mesmo tendo vivido no século 19, Wagner foi determinante para o próprio nascimento do cinema, pouco mais de cem anos atrás. Sua concepção da obra de arte total (também chamada por ele de obra de arte do futuro) englobando todas as demais na ópera revolucionou não só o mundo lírico como criou filhotes inesperados, fornecendo os elementos para uma nova arte, a do cinema, afirmar-se no século 20.
Quem diz isso é ninguém mais do que Theodor Adorno (1903-1969), o maior pensador da música no século 20, um dos criadores da Teoria Crítica e da Escola de Frankfurt e parteiro do conceito de “indústria cultural”. Pois Adorno, em seu “Ensaio sobre Wagner”, escreve a certa altura que “o entusiasmo do jovem Nietzsche se equivocava sobre a obra de arte do futuro: nesta se produz o nascimento do cinema a partir do espírito da música”. Adorno localiza aí, na obra de arte total de Wagner, o nascedouro da indústria cultural que tanto odiava. E, para provar isso, cita uma carta de Chamberlain a Cosima, mulher de Wagner, em 1890, antes portanto da invenção do cinematógrafo, a respeito da “Sinfonia Dante” de Liszt, amigo dileto e parceiro estético de Wagner: “Façam executar esta sinfonia com uma orquestra oculta em uma sala escura, e no fundo projetem-se imagens. Vocês verão entrarem em êxtase todos os meus gelados vizinhos de hoje, cuja insensibilidade atormentava meu pobre coração”.
Por isso, Richard Wagner e suas monumentais óperas constituem o núcleo inicial a partir do qual se discutem as relações entre ópera e cinema – um tópico recente que entrou na agenda dos pesquisadores internacionais há pouco mais de duas décadas. Um livro recém-lançado nos Estados Unidos busca consolidar este tema interdisciplinar de estudo, vasto o suficiente para abranger desde a ópera filmada até as tramas que encontram apoio musical decisivo em determinadas árias, óperas e/ou compositores clássicos.
Em “Wagner and the Cinema” (Ed. da Universidade de Indiana, 2010), os editores Jeongwon Joe, da Universidade de Cincinatti, e Sander L. Gilman, da Universidade Emory, convocam um time seleto de pesquisadores para esquadrinhar cerca de 150 filmes em dezoito artigos.
Ereção acústica
São muitas as premonições cinemáticas de Wagner em suas óperas que Jeongwon Joe, professor da Universidade de Cincinatti, começa citando um artigo pioneiro sobre música de cinema, dos idos de 1991 por Stephen Bush: “Todo profissional responsável pela música de um filme é consciente ou inconscientemente, discípulo de Wagner”.
São muitas as premonições cinemáticas de Wagner em suas óperas. Além da tão repetidamente lembrada técnica do leitmotif – a atribuição de uma melodia, ou um tema, a cada personagem e/ou situação sempre que ela retorna à cena, recurso atualmente banal a ponto de ser usado em telenovelas --, Wagner foi um dos primeiros a adotar o que se chama hoje de fazer música “Mickey-Mousing”: como é tão comum hoje na animação, a música acompanha passo a passo – ou nota a nota – os movimentos dos personagens.
Um dos exemplos mais impressionantes do talento cinematográfico wagneriano é o que Joe chama de cena de “ereção acústica”, num momento em que Isolda chora tendo ao lado seu amado Tristão inerte, na impressionante cena final da ópera “Tristão e Isolda”. A célebre cena ficou famosa como “Liebestod”, e alcança seu momento culminante quando Isolda canta a palavra “Weltaten”, o Tristão morto experimenta uma ‘ereção acústica’ proporcionada por ondas sinfônicas que funcionam como amplificação estética do drama. São sucessivas ondas orquestrais ascendentes entre os 4 e os 5 minutos e meio, numa música de 7 minutos que vale a pena ouvir (assista abaixo, por exemplo, a soberba performance encenada de Wautraud Meier no Scala, em 2007, com orquestra regida por Daniel Barenboim, e também a da sensacional Nina Stemme em concerto, no Youtube). A partir desta descrição, pode-se detectar o uso do mesmo recurso em centenas de trilhas sonoras dos quatro cantos do mundo neste último século.
Entre os artigos, quase todos muito interessantes e diversificados -- cobrindo desde o uso da música de Wagner no cinema mudo até o “Excalibur” e as séries Star Wars e O Senhor dos Anéis --, há um particularmente instigante, intitulado “Lendo Wagner em ‘Bugs Bunny nips the nips”, um desenho tido e havido como ultrajante porque, feito em 1944, mostra um Pernalonga campeão lutando contra caricatos soldados japoneses (corria a Segunda Guerra Mundial, não esqueçamos, e a animação era mais uma peça de propaganda). Carl Stalling, o genial responsável pela música, usa trechos de “As Valquírias” para reforçar a imagem nacionalista norte-americana de Pernalonga. Como a imagem de Wagner estava profundamente associada ao nazismo e ao Terceiro Reich, é absolutamente surpreendente o recurso. Ao mesmo tempo, Stalling usa temas com escalas pentatônicas tipicamente orientais para caracterizar o infame soldado japonês. O desenho foi censurado e não aparece nas antologias modernas do personagem em DVD. Neil Lerner indica que cerca de 120 desenhos da era de ouro da animação nos EUA utilizam música de dez óperas de Wagner.
Valquírias na Guerra do Iraque
Uma das utilizações mais famosas da música de Wagner no cinema é, sem dúvida, é a da “Cavalgada das Valquírias” por Francis Ford Coppola em “Apocalypse Now”, filme de 1979. “Pois aquelas cenas foram tão memoráveis”, escreve Jeongwon Joe, “que serviram de inspiração para o real ataque aéreo norte-americano ao Iraque em 21 de junho de 2003”. Ele cita inclusive o relato da agência de notícias Reuters: “As tropas dos EUA empolgaram-se numa bizarra retomada musical do filme ‘Apocalypse Now’ sobre a guerra do Vietnã. Com a ‘Cavalgada das Valquírias’ ainda ressoando em seus ouvidos e o barulho dos helicópteros sobre suas cabeças, os soldados em veículos blindados caçaram os franco-atiradores muslims que resistem à ocupação do Iraque e invadiram casas na parte oeste da cidade de Ramadi”. Encantado com a força da música de Wagner, Jeongwon Joe esquece a morbidez deste perverso cruzamento entre ficção e realidade.
A aura de Wagner é tamanha que na cerimônia do Oscar em 2004, Julia Roberts apresentou um vídeo-tributo a Katharine Hepburn por sua morte em 2003: “Os minutos finais do vídeo”, diz Joe, “foram regados a música orquestral do final do ‘Crepúsculo dos Deuses’”. E, complementa o pesquisador, “mesmo quando sua música não é diretamente tocada, ele é a grande inspiração de trilhas como as de Stars Wars e do Senhor dos Anéis”.
Afinal, sempre se soube da imensa força da música de Wagner. Sintomaticamente, suas óperas foram as primeiras a serem filmadas, um pioneirismo inaugurado por Edwin S. Porter nos 25 minutos de “Parsifal” levados à telona em 1904. Sete anos depois, o jornalista W. Stephen Bush, em artigo para a revista “The Moving Picture World”, já reconhecia precocemente, em plena era do cinema mudo, que “todo profissional responsável pela música de um filme é, consciente ou inconscientemente, discípulo de Wagner”.
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Wautraud Meier no Scala, em 2007, com orquestra regida por Daniel Barenboim:
Bugs Bunny Nips The Nips:
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