Um brinde ao centenário da Sagração, obra-matriz e fonte da música do século 20.
"Stravinsky tocando sua música" - Desenho de Jean Cocteau
Nesta semana comemoramos o centenário da estreia da “Sagração da Primavera”, que aconteceu em Paris, no Théâtre des Champs Elysées, na noite de 29 de maio de 1913. A mais genial parceria entre o compositor Igor Stravinsky, o bailarino e coreógrafo Vaslav Nijinsky e Nicolas Roerich (o responsável pela montagem, incluindo os figurinos), que conta a história do sacrifício de uma virgem ao deus da primavera, mudou os rumos da história da música. Na verdade, estabeleceu um novo ponto de partida para a música no século 20.
Assista à Sagração tal como subiu ao palco pouco menos de cem anos atrás no DVD “Stravinsky and the Ballets Russes”, com a trupe do Teatro Mariinsky, liderada pelo maestro Valery Gergiev (BelAir Classiques, 2009). É fundamental para compreender o espanto e a intolerância da crítica e do público parisiense em 1913. Tudo era novo demais e não se esgotava apenas na agenda exótica de Diaghilev de ‘vender’ uma Rússia luxuriante e oriental para os europeus. Obras como a Sagração anunciavam uma revolução múltipla no mundo das artes dali para a frente. E isso, sabe-se, costuma assustar o público e as engessadas mentes da crítica. A coreografia de Nijinsky, ao individualizar os 47 bailarinos em cena, mostrava caminhos inexplorados para a dança dali em diante. E Stravinsky faz uma polirritmia esfuziante fornecer a base instável para verdadeiros empilhamentos de discursos sonoros. De fato, a Sagração é meio-parto da música contemporânea -- a outra metade ficou por conta do “Pierrot Lunaire” de Arnold Schoenberg, um ano antes, em 1912.
Inteiramente seduzidos pela beleza plástica, a dança moderna e uma música “exótica”, primitiva, em tudo diferente da ocidental, tendemos a pensar que Diaghilev e sua trupe desembarcaram em Paris como um OVNI – e tomaram de assalto a capital cultural do mundo nas duas primeiras décadas do século 20 de modo avassalador.
Nada mais enganoso. Desde 1900, na Exposição Universal de Paris, engendrava-se a venda de uma imagem pagã, primitiva, exótica da Rússia czarista – oposta, por exemplo, à música russa que se europeizou rapidamente via Tchaikovsky no final do século 19. Embora a frase da pintora brasileira Tarsila do Amaral tenha sido escrita em 1923, quando acabara de se instalar na cidade, cabe bem para a Paris da época como um todo. “Sinto-me cada vez mais brasileira, quero ser a pintora da minha terra [...] O que se quer aqui é que cada um traga contribuição de seu próprio país. Assim se explicam o sucesso dos bailados russos, das gravuras japonesas e da música negra [o jazz, que fez sucesso em Paris a partir de 1917]. Paris está farta de arte parisiense”.
De fato, o mundo cabia em Paris. Sobretudo o exótico. Enquanto a erótica dançarina negra norte-americana Josephine Baker – que também atendia por “Pérola Negra” e “Vênus de Bronze” -- arrebatava multidões ao som do jazz negro no Folies Bergère, quem ditava tendências na dita grande música era um russo, Igor Stravinsky.
Mas Stravinsky, é bom não esquecer, só chegou a esta posição de destaque por dois bons motivos: 1) era de fato um gênio; mas 2) obedeceu à agenda estética do empresário dos Balés Russos, Serge Diaghilev, preocupado em “vender” uma Rússia pagã e primitiva especialmente para as platéias européias, não-russas.
Intoxicada pelo wagnerismo galopante, Paris enxergou nesta síntese inteiramente oposta uma grande avenida para as artes modernas. Claude Debussy enxergou o perigo para a música francesa, então já abalada pelo wagnerismo. Poucos lembram, mas catorze dias antes da estreia da “Sagração”, em 15 de maio de 1913, no mesmo Théâtre des Champs Elysées, os Balés Russos estrearam, com o mesmo Pierre Monteux na batuta, os mesmos músicos e a mesma trupe liderada por Nijinsky, uma obra-prima de Debussy, “Jeux”.
O escândalo sem precedentes da Sagração fez submergir a obra, que só se impôs nas salas de concerto depois da Segunda Guerra Mundial. Debussy morreu em 1918, mas certamente entendeu o recalque de seu Jeux. Afinal, ele mesmo tocara a versão para dois pianos da Sagração ao lado de Stravinsky, onze meses antes da estreia, em junho de 1912, na casa de Louis Laloy. O dono da casa descreve assim o final: “Quando eles terminaram, não houve abraços nem cumprimentos. Estávamos todos mudos, paralisados como depois de um furacão que, vindo de tempos imemoriais, levava de volta nossas vidas às raízes”.
Na noite de 29 de maio de 1913, Debussy não estava na plateia que viveu a turbulenta estreia da Sagração. Mas vira o ensaio geral na noite anterior. Cita-se muito sua frase sobre a obra: “É música selvagem com todo o conforto moderno”. E quase nunca outra, pinçada de uma carta a um amigo. Nela, confessou em contido desespero: “Como ficará a música francesa depois da Sagração?”. O medo virou despeito três anos depois: em 1916 Debussy já sentia uma inveja danada do sucesso de Stravinsky (“parece uma criança mimada dizendo o meu Pássaro de Fogo, a minha Sagração; metendo o dedo no nariz da música”). O russo, que gostava de “Jeux” e só soube desta hostilidade décadas depois, insinuou que talvez Debussy tenha se sentido “envergonhado por não entender a Sagração”. Afinal, completou, “a geração jovem a aceita com entusiasmo”. É de fato uma música selvagem, e até domesticada, desde os anos 1940, quando Stokowski incluiu-a em “Fantasia”. Mas permanece matriz incontornável, como gostam de dizer os franceses, da música do século 20 – e ponto de parada obrigatório de todo compositor que se preze, em pleno século 21, para beber nesta multicolorida, multirrítmica e arrebatadora usina de sons. Viva Stravinsky, Viva a Sagração.
O cmais+ é e reúne os canais TV Cultura, UnivespTV, MultiCultura,
TV Rá-Tim-Bum! e as rádios Cultura Brasil e Cultura FM.
Visite o cmais+ e navegue por nossos conteúdos.
Compartilhar
Com Bruno Monteiro (violino), Miguel Rocha (cello) e João Paulo Santos (piano)
Em sua coluna musical no Estação Cultura João Marcos Coelho fala sobre as ligações do compositor com o Jazz
O programa desta semana presta homenagens a dois compositores: Alexander Arutiunian, que nasceu há 100 anos e Franz Lehár, nascido em 1870.
“Cantabile” contará com 13 episódios, e o tema principal será a voz
Museu Lasar Segall expõe obras da refugiada alemã