Ouvido não tem pálpebra, portanto está sujeito a todo tipo de sons. Desejáveis ou não, insuportáveis, belos, feios, estranhos. Mais: quando ouvimos música, precisamos abrir mão de nosso tempo e entrar no tempo da obra musical.
Ouvido não tem pálpebra, portanto está sujeito a todo tipo de sons. Desejáveis ou não, insuportáveis, belos, feios, estranhos. Mais: quando ouvimos música, precisamos abrir mão de nosso tempo e entrar no tempo da obra musical. E se ela é nova, então, além de renunciar ao nosso pulso temporal, precisamos ainda nos armar de paciência. Thomas Mann, em Doutor Fausto, “criou” uma série de obras musicais fictícias para Adrian Leverkhun calcadas na produção de Arnold Schoenberg. Marcel Proust também “criou” a célebre “Sonata de Vinteuil” no monumental ciclo romanesco Em Busca do Tempo Perdido baseado na “Sonata para violino e piano” de César Franck. Pela voz de um dos personagens, Proust afirma que frequentemente não entendemos nada na primeira audição “quando a música é um pouco complicada”. Só a “conheceremos perfeitamente”, aconselha-nos, “depois de ouvi-la duas ou três vezes”.
Isto é, a música precisa ficar memorável para nossos ouvidos para ser compreendida. Ou seria sentida? Num aforismo muito conhecido, Nietzsche diz que “é necessário aprender a amar” a música: “é preciso aprender a ouvir uma figura, uma melodia, saber discerni-la pelo ouvido, distingui-la, isolá-la e delimitá-la: em seguida, pratica-se o esforço e a boa vontade de suportá-la, apesar de sua estranheza, ter paciência com sua expressão, ternura, enfim com o que ela tem de singular; chega, afinal, o momento em que nos habituamos, onde esperamos, onde sentimos que ela nos faria falta; daí em diante, ela exerce seu fascínio até fazer de nós humildes e arrebatados amantes”.
O escritor Milan Kundera, um íntimo da música como Proust e Mann, comunga com Nietzsche este culto do sentir: “Por mais que Stravinsky rejeite a música como expressão dos sentimentos, o ouvinte ingênuo não sabe compreendê-la de outro modo. É a maldição da música, seu lado burro. Basta um violinista tocar as primeiras três notas de um Largo para que o ouvinte sensível suspire: “Ah! Que bonito!” Nada, não há nenhuma invenção ou criação nestas três primeiras notas que provoque a emoção”.
Afinal, a obra musical só se completa, após ser composta, no ato da sua interpretação – e isso acontece onde? Nos ouvidos de quem assiste à performance ao vivo ou a escuta no rádio, em casa ou no seu iPod. O ouvinte funciona, então, como “co-autor”, pois só ele lhe dá um sentido por meio da escuta. Ler é um ato semelhante, como acentua Roland Barthes numa reflexão que sintetiza com rara agudeza o que sentimos quando mergulhamos num livro: ler é “reescrever o texto da obra como se fosse o texto de nossa vida”. Mas a leitura pode ser feita a qualquer tempo, em qualquer lugar. A audição não: você precisa entrar no tempo específico da música. E mergulhar nela de tal modo que ela se transforme em “sua”.
Queixas sempre pipocam sobre a dificuldade de a música contemporânea ser entendida; e vende-se este peixe como se fosse novidade. Ora, Beethoven ficou famoso em Viena por causa de suas piores obras, criações malcosturadas de circunstância, como “A Vitória de Wellington” e a cantata “O Momento Glorioso”, feitas por encomenda para o encontro de Viena promovido por Metternich. Ou seja, Beethoven foi reverenciado pelos motivos errados. Quando a “Grande Fuga” foi tocada em Viena, Beethoven chamou de asno e cretino o público que não pediu bis.
Continuamos até hoje a pensar que é difícil ouvir música contemporânea, mas aí reside um engano. É difícil ouvir qualquer música que já não conheçamos. Admito que se ela for tonal, apesar de nova “descerá redonda” por nossos ouvidos. Ou seja, música contemporânea não é um bicho de sete cabeças. Precisamos ouvi-la do mesmo jeito que ouvimos a música do passado. Ou seja, nada de repetir “não entendo nada de música contemporânea”, já que não é necessário entender. Basta ouvir, deixar-se impregnar, e eventualmente gostar ou não.
A compositora francesa Michele Reverdy diz que não percebe nenhuma diferença entre a pintura figurativa e a abstrata. “O que vejo quando meu olhar passeia pela tela é a matéria, a forma, a composição, a cor, o traço. Quando minha memória retém da tela apenas uma bela imagem, pressinto que não estou diante de uma obra de grande interesse. É o caso dos surrealistas como Dalí, Magritte, Miró, que considero mais ilustradores do que pintores. Quanto aos que trabalham com o retorno à figuração, não tenho mais consideração por suas produções do que pelas dos músicos neotonais”.
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