Já houve tempo em que as inovações artísticas da alta cultura passaram ou foram determinadas pela alta costura.
A estilista francesa Coco Chanel
Já houve tempo em que as inovações artísticas da alta cultura passaram ou foram determinadas pela alta costura. E vice-versa. Isso vale para todas as artes na fervilhante Paris do período 1910-1925. A capital francesa, naquele momento, era a também capital mundial das artes e da cultura. Todo artista que pretendesse algo na vida estava por lá. A lista interminável começa com Picasso, inclui Jean Cocteau, Ravel, Debussy, Stravinsky, Nijinsky, Diaghilev e todos os nomes estrelados que estão passando pela sua cabeça agora. “Tout Paris” parecia saber duas verdades latentes, encapsuladas em duas frases: “toda revolução começa com uma troca de roupas”, disse o crítico René Bizet; e “a moda, o efêmero, compartilha o último sorriso com a arte, a eterna”, completou o fotógrafo de moda Cecil Beaton.
Mary Davis, professora e musicóloga da Case Western Reserve University, nos Estados Unidos, pesquisou na última década as relações entre música e moda neste trepidante período. Além de dois livros em 2007 -- Classic Chic: Music, Fashion and Modernism, pela Editora da Universidade da Califórnia, e Erik Satie, Reaktion Books --, lançou Ballets Russes Style, em 2010 (Reaktion Books).
Os três formam um fascinante mergulho nesta incrível Paris entre 1910 e 1925, que vivia um maravilhoso momento de explosão de todas as artes combinado com ascensão do consumo e a emergência das novas tecnologias. Mary Davis oferece revelações que mudam o que se pensava até agora sobre movimentos artísticos importantes, como o neoclassicismo nas artes, detonado nos anos 20 por Paris.
Você pode até duvidar, mas ao que tudo indica a guinada do compositor russo Igor Stravinsky para o neoclassicismo foi parida na luxuriante cama da estilista Coco Chanel nos anos 20. O vertiginoso caso amoroso entre a criadora do vestido tubinho e do perfume Chanel no. 5 com o compositor da “Sagração da Primavera” não gerou filhos mas rendeu uma importante sequela artística. Stravinsky saiu machucado da relação, num momento em que Coco Chanel “colecionava russos”, segundo um cronista mundano parisiense. E purgou a dor-de-corno (Chanel trocou-o pelo sobrinho do czar Alexandre III, que assassinara o bruxo Raspútin na Rússia imperial) assimilando seus conceitos estilísticos: o retorno aos clássicos adequava-se à agenda criativa de Chanel, que pregava simplicidade, clareza, precisão.
A centena de ilustrações de Classic Chic -- de partituras a desenhos de moda, passando por reproduções de grandes artigos e reportagens nas principais revistas de moda sobre música e músicos contemporâneos -- leva o leitor, num primeiro momento, a imaginar que foi a moda a mola propulsora da cena artística. As revistas de moda, escreve Mary, promoviam os músicos, sobretudo os compositores, tratando-os como celebridades. Mais do que isso, divulgavam suas obras como um aspecto importante do estilo elegante de viver. Faziam um paralelo artístico das obras musicais com a perfeição dos vestidos de alta-costura. A imprensa também oferecia um guia para um estilo de vida sofisticado. E por isso considerava essencial publicar artigos sobre compositores, intérpretes e noticiar concertos.
O período 1910-1925 em Paris teria sido mesmo, senão o único, ao menos o instante histórico culminante desta relação moda-música? Pode ser. Em que outro momento histórico uma revista de moda publicaria uma partitura de música recém-criada, nova, inédita, de um compositor erudito? Só na Paris de 1910-1925 mesmo. “La Gazette du Bon Ton” promoveu os Balés Russos de Diaghilev e trouxe a música e os músicos de sua rarefeita esfera para a vida de glamour do mundo da moda. Chegou a encomendar música. No final dos anos 10 e na década de 20 “Vanity Fair”, que se pautou para cobrir a cultura como elemento da vida moderna, promoveu a face do modernismo que transpirava juventude, era acessível e divertida – alternativa que afastou os estilos mais herméticos e revolucionários do modernismo da tríade Schoenberg, Berg e Webern. E a “Vogue” tornou a música um ícone de moda, conectando-a diretamente com a alta-costura.
Erik Satie é nome-chave de dois dos livros. Em 1914, Lucien Vogel, publisher da “Gazette du Bon Ton”, encomendou uma obra sobre temas envolvendo a moda a Stravinsky. Mas o russo saboreava o sucesso escandaloso da “Sagração da Primavera”, no ano anterior com os Balés Russos. Recusou porque achou pouco o dinheiro oferecido. Vogel convidou Satie, que também recusou, mas pela razão contrária: considerou o dinheiro oferecido alto demais, e que uma quantia daquelas o comprometeria. Vogel concordou em reduzir o cachê e Satie aceitou a empreitada. Eram 3.000 francos – algo que jamais recebera no passado nem receberia no futuro por alguma obra em sua vida.
A idéia era publicar um álbum especial de qualidade gráfica sofisticada, semelhante à Gazette. O título evocava o slogan usado para atrair turistas e visava vender, mais do que música, um estilo de vida sofisticado – do banho de mar ao tênis, do golfe ao iatismo, dos piqueniques às corridas de cavalos, da pesca ao carnaval. Entendia-se também que estavam incluídos os chamados esportes sociais, como o flerte e a dança. Satie deveria prender-se à música, deixando para Charles Martin as ilustrações das vinte peças.
O álbum combina peças para piano, textos, desenhos e grafismos e ilustrações. É uma adaptação da Gazette. O casamento perfeito entre artes visuais, o mundo “chic” da moda e a música contemporânea. Uma obra-prima desdenhada pela crítica oficialesca. Também pudera. Críticos convencionais detestam provocações e são de Satie estas frases: “Foi um crítico que posou para a estátua ‘O Pensador’ de Rodin”; e “há três espécies de críticos: os que são importantes; os que são menos importantes; e os que não são importantes. Os dois últimos tipos não existem: todos os críticos são importantes”.
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