Em meados do século 19, Franz Liszt, o virtuose máximo do piano, só recusou uma oferta milionária para uma turnê pelos Estados Unidos, da ordem de 40.000 libras (cerca de US$ 1 milhão hoje), porque tinha pânico de atravessar o oceano.
'Quarter Notes and Bank Notes', um dos mais interessantes e reveladores livros sobre música, originalmente publicado em cara edição capa-dura pelo economista Frederic M. Scherer nos Estados Unidos em 2004, foi relançado em junho de 2012 em versão mais barata, o chamado '‘paperback’', pela editora da Universidade de Harvard. Faz no título um trocadilho entre seminíma, a nota musical, e a nota promissória bancária. Vale a pena encomendá-lo na www.amazon.com por 22 dólares mais frete. O livro é interessante porque transforma uma pesquisa sistemática e ampla em uma linguagem sempre atraente e acessível, jogando novas luzes sobre fatos e processos sobre os quais em geral os pesquisadores musicais acadêmicos não gostam de se debruçar. E revelador porque reinsere a música no tecido da evolução dos processos econômicos, sociais e políticos, além dos propriamente artísticos.
Ninguém cria no vácuo e muito menos só graças à inspiração em sentido absoluto, diz Scherer. Os exemplos de que compositores e músicos estavam sim plenamente inseridos na vida econômica de seu tempo são variados, ao longo da história da música. Em meados do século 19, Franz Liszt, o virtuose máximo do piano, só recusou uma oferta milionária para uma turnê pelos Estados Unidos, da ordem de 40.000 libras (cerca de US$ 1 milhão hoje), porque tinha pânico de atravessar o oceano. Johann Strauss Jr. (1825-1899), que não curtia esta fobia, aceitou uma oferta de Boston, de US$ 100.000 (equivalentes a US$ 2 milhões atualmente) por uma turnê norte-americana, onde regeu ao ar livre uma orquestra de 2.000 músicos e um coral de 20.000 integrantes diante de uma plateia estimada em 100 mil pessoas. Strauss, o rei da valsa, exigiu pagamento adiantado, antes de seu embarque em Viena. Anote-se ainda que Strauss foi o primeiro a criar o sistema de “franchise”: chegou a comandar quase 1.000 músicos em dezenas de orquestras Strauss que atuavam simultaneamente em vários locais em Viena.
Scherer argumenta que estas são exceções, e que é difícil afirmar sem reservas que o mercado é mais instigante e desafiador para os compositores – ele constituiria, assim, um incentivo maior à criatividade musical do que o sistema de emprego nas cortes ou igrejas. Haydn, por exemplo, praticamente “inventou” o quarteto de cordas, a sinfonia, o concerto e a sonata, e atribuiu isso ao isolamento de seu trabalho como diretor musical dos Esterhazy (“longe de Viena, segui meu próprio caminho”). Está certo que Liszt e Strauss são exceções, mas o fato é que os compositores sempre estiveram de olho no mercado. Gioacchino Rossini (1792-1868), por exemplo, só sossegou e declarou encerrado seu ciclo criativo após ter composto 30 óperas em treze anos. Aí sim se deu ao luxo de uma aposentadoria precoce.
Carl Czerny (1791-1857), o aluno predileto de Ludwig van Beethoven (1770-1827), recusou em 1818 um convite do autor da “Nona Sinfonia” para ser o solista da estréia mundial do “Concerto Imperador para Piano e Orquestra”, o quinto e mais famoso do compositor. Motivo: faturava muito mais dando 16 horas de aulas diárias de piano. Doze anos mais tarde, Czerny escreveu a Felix Mendelssohn (1809-1847) que naquele momento dedicava-se mais à composição, porque esta dava mais dinheiro. Joseph Haydn (1732-1809) ficou embasbacado em Londres quando lhe pagaram 10 vezes mais do que recebia em Viena por uma aula de música.
Aqui estão três entre muitas historietas sintomáticas e divertidas presentes no livro. Em carta ao filho Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) em 1780, Leopold recomendou-lhe que escrevesse música não somente para o público apreciador de música, mas também para os leigos, lembrando que a proporção era de 100 leigos para 10 conhecedores. Sua descrição de três de seus concertos para piano chega a ser cínica: “Os concertos combinam o muito difícil com o muito fácil – são brilhantes – agradam aos ouvidos naturalmente, mas não caem no vazio. Assim, não somente os especialistas ficam gratificados, também o populacho vai gostar – só que sem saber por que”. De igual modo, Johann Christian Bach (1735-1782), um dos filhos do velho Johann Sebastian Bach (1685-1750), apelidado Bach de Londres, declarou pragmático que em suas sinfonias escrevia movimentos específicos para agradar a cada tipo de público.
A lição mais importante de Scherer é que não se cria nada sem incentivo – de preferência monetário. “Money no bolso” é mesmo mandamento eterno e sempre atual dos seres humanos. Venha de onde viver. Das cortes da nobreza do século 18 ou das Igrejas; do mercado no século 19. E até de reis famosos, como Frederico Guilherme da Prússia, que passou a perna de modo miserável em Beethoven. O compositor -- esperto o suficiente para vender a vários editores europeus a mesma obra, instituindo assim uma espécie de direito autoral antes de sua invenção – caiu no conto do anel quando mandou-lhe uma partitura de sua “Nona Sinfonia” com os elogios escritos de praxe na primeira página esperando um agrado de Sua Majestade. Recebeu de volta um belíssimo anel cravejado de diamantes. Tempos depois, precisando de algum, mandou avaliar a jóia – e descobriu que era bijuteria, valia no máximo uma taça de vinho barato.
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