A religião continua ocupando um lugar de destaque no caleidoscópio das músicas contemporâneas, mas suas obras, entretanto, não são regularmente ouvidas em templos e/ou igrejas.
O compositor erudito estoniano Arvo Pärt
A religião continua ocupando um lugar de destaque no caleidoscópio das músicas contemporâneas. Afinal, o mundo pode ter mudado muito desde o canto gregoriano medieval, mas os homens não. Os “compositores religiosos” sempre se ocuparam, e permanecem focados, direta ou indiretamente, em uma das mais viscerais necessidades humanas – a da busca da transcendência. Suas obras, entretanto, não são regularmente ouvidas em templos e/ou igrejas, mas nas salas de concerto. Os mais destacados agrupam-se em torno do leste europeu, onde brilham os poloneses Henry Gorecki (193-2010), Krzysztof Penderecki (1933) e o estoniano Arvo Pärt (1935). Este último é responsável pelo CD erudito contemporâneo de maior vendagem da história da gravadora ECM, acima de 600.000 cópias do CD “Fratres”, lançado 25 anos atrás.
Não é de hoje, porém, que a música convive intimamente com a religião. Ela nasceu, aliás, umbilicalmente ligada ao sentimento religioso, devido à sua abstração, característica essencial que a diferencia das demais artes. Ela diz tudo e nada, ao mesmo tempo. Os sons, em si, nada significam além do fenômeno físico que provocam em nossos ouvidos; mas, por outro lado, são particularmente apropriados – porque justamente nada significam em si – para todo tipo de interpretação extramusical. Nenhuma arte expressa de modo mais misterioso e adequado o fenômeno da divindade – que não se prova racionalmente, mas sente-se. O que seria um defeito – não referir-se diretamente a nenhum conteúdo – transformou-se em seu principal atributo: que outra arte seria capaz de expressar o indizível, o indefinível, Deus em suma?
A música nos toca profundamente porque seu conteúdo não é formalizável, é impossível de ser traduzido em palavras. Assim como o sentimento religioso. Ateu, o filósofo e teórico da música do século 20 Theodor Adorno reconhece isso em seu livro seminal “A Filosofia da Nova Música”, de 1947: “A linguagem musical não tem nada a ver com a linguagem significante. É nisso que reside seu aspecto religioso. O que é dito no fenômeno musical é ao mesmo tempo preciso e oculto. Toda música tem por Ideia a forma do Nome divino [...] ela representa a tentativa humana, mesmo vã, de enunciar o próprio Nome, em vez de comunicar seus significados”. O pensador da Escola de Frankfurt criadora da chamada teoria crítica não hesita em atribuir à música contemporânea – que qualifica sempre como ‘música nova’ -- o status e o destino de Jesus Cristo. “A música nova chamou para si todas as trevas e toda a culpa do mundo. Ela encontra toda a sua felicidade em reconhecer a desgraça, toda a sua beleza em proibir-se a aparência do belo”. É um verdadeiro calvário sonoro, em tudo semelhante à via-crúcis de quase 2.000 anos atrás.
O livro sagrado da cristandade está ligado a todos os momentos-chaves da história da música. Desde o “Antigo Testamento”, onde o Salmo 150 a exalta como ponte para Deus até a criação musical contemporânea. O italiano Luciano Berio (1925-2003), confessadamente ateu, compôs “Agnus” em 1971 com a seguinte justificativa: “A gente não se aproxima necessariamente da Bíblia porque vai colocar música em alguns trechos. O que me atrai, a partir de meu pequeno observatório leigo, neste gigantesco ‘Planeta Bíblia’, é antes de tudo seu caráter impenetrável, a impossibilidade de compreender seu sentido universal e retraçar seu objetivo geral, como temos o hábito de fazer com as obras intelectuais, produtos da inteligência humana”.
O século 20 assistiu a um verdadeiro “boom” de música de inspiração religiosa, mais livre em relação aos ritos de culto. Compositores tão díspares quanto o austríaco Arnold Schoenberg (1874-1952), o russo Igor Stravinski (1882-1971), o francês Olivier Messiaen (1908-1992), o inglês Benjamin Britten (1913-1976) e os já citados Gorecki e Penderecki construíram obras imponentes e altamente significativas de caráter religioso.
Schoenberg, autor do oratório “A Escada de Jacó” e da ópera “Moisés e Aarão”, baseados em textos bíblicos, identifica-se com a figura dos profetas mensageiros da verdade: “Meu sentimento pessoal é que a música dispensa uma mensagem profética e revela a forma de vida mais nobre à qual a humanidade aspira”.
Stravinski, o autor da já centenária “Sagração da Primavera”, colocou na dedicatória de sua “Sinfonia de Salmos” a frase “Composta para a glória de Deus” e explica que a música de inspiração religiosa tem por função fazer nascer o sentimento de “calma dinâmica” que prepara o ouvinte para a prece e a ação de graças. Messiaen é o compositor mais efetivamente religioso deste grupo. Fez da Bíblia a inspiração máxima de uma obra decisiva no século 20, onde desponta uma imponente produção de música para órgão (ele foi organista da Igreja da Santa Trindade em Paris por meio século, de 1931 em diante).
Provavelmente esta é a maior fonte de poder da música em todos os tempos: o de ser a única arte capaz de levar-nos a nos aproximar do indizível, da transcendência de um ser superior. A maior novidade da música de caráter religioso/místico no século 20 é a ampliação, para além dos rituais e cultos, de seu alcance. Música espiritual não precisa ser necessariamente ouvida numa igreja; é hoje, aliás, preferencialmente ouvida em concertos. Esta é a lição de Stravinski, Arvo Pärt, Gorecki, Penderecki e tantos outros grandes criadores contemporâneos.
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