CD reúne seis propostas de miscigenação musical para o século 21
Que houve muitas guerras no século 20, talvez um recorde de conflitos na história, sabe-se bem. Uma das mais interessantes, menos perversas e até aqui pouco estudadas, apesar de afetar o dia-a-dia de milhões de pessoas, provocar muitas baixas e deixar viúvas aos milhares, foi a da alta com a baixa cultura. E, dentro dela, o fenômeno mais característico foi o embate entre a música popular e a erudita.
O filósofo norte-americano Bernard Gendron, no livro “Between Montmartre and the Mudd Club – popular music and the avant-garde” (University of Chicago Press, 2002), identifica cinco “rounds” decisivos nesta batalha.
Houve dois enfrentamentos em Paris e três em Nova York: “São cinco momentos históricos nos quais o encontro entre a música popular e a vanguarda foi especialmente dramático e portentoso”, escreve Gendron. “A breve floração dos cabarés artísticos no final do século 19 em Montmartre, a Era do Jazz em Paris imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, a ascensão do jazz moderno depois da Segunda Guerra mundial, a credibilidade cultural conquistada pelos Beatles na segunda metade dos anos 60, e o movimento new wave na Nova York do final dos anos 70”.
Hoje, nesta segunda década do século 21, o que permanece, diz Gendron, “é um mix heterogêneo e não-hierárquico de nichos de mercado – a música clássica, o jazz, eletrônica, dance, etc. -, todos se acotovelando entre si em busca de um espaço cultural menos congestionado”.
O CD que você está prestes a ouvir pratica justamente esta saúdavel ausência de preconceitos – de lado a lado. Nem prevalece o esnobismo dos frequentadores das salas de concerto; nem os que gostam de música popular. Na verdade, adjetivos como “erudito” (em má hora cunhado por Mário de Andrade para qualificar a música de concerto) e “popular” não fazem mais sentido atualmente.
O que vale, mesmo, é a qualidade de invenção. E isso pode ser facilmente constatado nestas catorze performances memoráveis que aconteceram em 2017 no Auditório Umuarama, do Instituto CPFL de Cultura, em Campinas. É um vale-tudo, admito. Mas rigoroso em suas exigências criativas. Assim, as guitarras do Projeto B literalmente reinventam de modo radical a Valsa Humorística de Alberto Nepomuceno, obra criada na passagem dos séculos 19/20; e também o Batuque de Lorenzo Fernández.
De outra perspectiva, o pianista Amilton Godoy -- notável virtuose que começou estudando na Escola Magda Tagliaferro, solou junto a orquestras sinfônicas no Teatro Municipal de São Paulo e depois conquistou prestígio internacional com o Zimbo Trio – improvisa sobre uma das melodias mais amadas de Villa-Lobos, o prelúdio das Bachianas Brasileiras no. 4.
O saxofonista e flautista Teco Cardoso, ao lado do pianista Tiago Costa, brinca com outras melodias que estão no inconsciente de todo brasileiro, pinçadas da ópera O Guarany de Carlos Gomes.
O quarteto do contrabaixista Marcos Paiva literalmente tira para dançar a Valsa no. 4 de Camargo Guarnieri. E Neymar Dias, virtuose da viola caipira, passeia pelo universo barroco de quatro séculos atrás, em “Barroca” e na Gavota Rondó de Johann Sebastian Bach.
Provavelmente, porém, o músico que melhor encarna esta postura musical sem preconceitos é André Mehmari. Ao piano solo, ele vai de Nazareth a George Gershwin, de Anacleto de Medeiros a uma incrível suíte intitulada Sarabandas, construída a partir de temas de Bach.
Bom divertimento, porque quando a música é assim praticada, a alegria que sentem estes músicos ao passear suas criatividades por repertórios sem cerquinhas idiotas que os separaram um dia passa para nossos ouvidos. Que, claro, agradecem.
FAIXAS
1. “Barroca” (Neymar Dias) – com Neymar Dias e Igor Pimenta
2.”Prelúdio das ‘Bachianas Brasileiras no. 4’” (Villa-Lobos) - com
Amilton Godoy e Gabriel Grossi
3. “O Guarany” (Carlos Gomes) – Teco Cardoso e Tiago Costa
4. “Pelo Amor”- Leopoldo Miguez – Lucia Benedetti e Rafael Andrade 3’18
5. “Sarabandas” (André Mehmari) – André Mehmari
6. “Gavota Rondó” (J.S.Bach) – Neymar Dias e Igor Pimenta
7. “Valsa Humorística n3 opus 22” (Alberto Nepomuceno) - Projeto B
8. “Apanhei-te cavaquinho” (Ernesto Nazareth) - Teco Cardoso e Tiago Costa
9. “Pássaros em festa” (Ernesto Nazareth) - Mehmari
10. “Valsa no. 4” (Camargo Guarnieri) – Marcos Paiva Quarteto
11. “Felipe na área” (Tiago Costa) – Teco Cardoso e Tiago Costa
12. “Prélude” (George Gershwin) - André Mehmari
13. “Três estrelinhas” (Anacleto de Medeiros) - André Mehmari
14. “Batuque” (Lorenzo Fernández) - Projeto B
O cmais+ é e reúne os canais TV Cultura, UnivespTV, MultiCultura,
TV Rá-Tim-Bum! e as rádios Cultura Brasil e Cultura FM.
Visite o cmais+ e navegue por nossos conteúdos.
Compartilhar