Com o barítono alemão Stephan Genz e o pianista francês Michel Dalberto
Para muitos, “Winterreise”, ou “Viagem de Inverno”, é o mais perfeito ciclo de lieder da história da música. De fato, se não é o mais perfeito, é o mais emblemático, o mais simbólico de um gênero que praticamente fixou-se com Franz Schubert (1797-1828) e com ele alcançou seu zênite num tesouro de mais de 600 lieder – as canções para voz e piano. O gênero é tipicamente alemão, e foi cultuado também por Beethoven, Schumann, Brahms e Richard Strauss, entre os mais notórios.
O compositor já estava com sífilis em estado adiantado quando compôs, em fevereiro de 1827, os primeiros doze lieder sobre poemas de seu contemporâneo Wilhelm Müller (1794-1827) publicados em Viena. No mês seguinte março, morria Beethoven, e Schubert foi um dos que carregaram seu caixão. Ficou mais deprimido ainda quando leu o segundo pacote de doze poemas publicados logo após a morte do poeta em setembro. A atmosfera sombria dos poemas gerou uma forte identificação com sua própria condição. Esta é a viagem de alguém que, como ele, chegava ao fim da vida.
Anunciou assim aos amigos de boemia o término de sua mais recente criação: “Vou cantar para vocês um ciclo de lieder sinistros. Eles me tocaram mais do que todos os outros”. Aqui Schubert alcança a máxima densidade de escrita pianística. Voz e instrumento se equivalem, em pé de igualdade. O sofrimento trágico perpassa da voz ao piano, e vice-versa.
O CD desta semana traz o barítono alemão Stephan Ganz, 44 anos, interpretando Viagem de Inverno. Ele é um especialista reconhecido na interpretação de lieder. Teve, entre seus mestres, Dietrich Ficher-Dieskau e Elisabeth Schwarzkopf. E conta, nesta gravação do selo suíço Claves, com o excelente pianista francês Michael Dalberto, 62 anos, velho conhecido dos brasileiros (já fez muita música de câmara em São Paulo).
Para facilitar o entendimento do ciclo, após a descrição das faixas do CD incluo uma tradução para o português feita por Eduardo Gabarra, captada na web. Uma sugestão é que você leia cada poema e em seguida ouça a performance de Genz e Dalberto. Mas você também pode ler todos os poemas de uma vez e depois ouvir o ciclo sem interrupções. Em ambos os casos, é uma experiência única e um modo acessível de conhecer melhor estas incríveis obras-primas de Schubert.
FAIXAS
1. Gute Nacht
2. Die Wetterfahne
3. Gefrorne Tränen
4. Esrtarrung
5. Der Lindebaum
6. Wasserflut
7. Auf dem Flüsse
8. Rückblick
9. Irrlicht
10. Rast
11. Frühlingstraum
12. Einsamkeit
13. Die Post
14. Der greise kopf
15. Die Krähe
16. Letste Hoffnung
17. Im Dorfe
18. Der Stürmische Morgen
19. Täuschung
20. Der Wegweiser
21. Das Wirtshaus
22. Mut
23. Die Nebensonnen
24. Der Leiermann
Gravado no Studio Teije van Geest, Sandhäusen, Alemanha, de 18 a 21 de outubro de 2010.
Claves, 2015 www.claves.ch
Sonho de Primavera
Sonhei com flores coloridas
tal como florescem em maio;
sonhei com verdes campinas,
com alegres cantos de pássaros.
E quando os galos cantaram
meus olhos se abriram;
estava frio e escuro,
gritavam os corvos nos telhados.
Mas nos vidros das janelas
quem pintou aquelas folhas ?
Foi para rir do sonhador
que vê flores no inverno ?
Sonhei com amor correspondido,
com uma bela moça,
com abraços e beijos,
com alegria e felicidade.
E quando os galos cantaram
meu coração despertou;
agora me sento aqui sozinho
e penso em meu sonho.
Fecho de novo os olhos,
ainda bate ardente o coração;
flores em minha janela, quando voltarão a ser verdes ?
Quando terei minha amada nos braços ?
OS POEMAS TRADUZIDOS:
A Viagem de Invernal
1.Gute Nacht/Boa Noite
Como estrangeiro cheguei,
Como estrangeiro parto.
Maio me foi benfazejo
com muitos campos de flores.
Ela falou de amor,
sua mãe até de casamento;
agora o mundo está turvo
e o caminho coberto de neve.
Não posso escolher a hora
de minha viagem,
preciso achar meu próprio caminho
nesta escuridão.
Minha sombra, que a lua projeta,
é minha companheira de viagem,
e sobre os campos de neve
procuro as pegadas dos animais selvagens.
Por que ficaria aqui mais tempo,
para que expulsassem ?
Que vão os cachorros soltos
latir na porta de seus donos.
O amor ama viajar
de um lugar para outro,
foi Deus que assim o fez:
boa noite, minha querida.
Não quero perturbar seus sonhos,
por que turbaria sua paz ?
Você não ouvirá meus passos
quando suavemente eu fechar a porta.
Em minha saída escrevo
"Boa noite" em seu portão,
para que você veja
que esteve em meu pensamento.
2.Die Wetterfahne/O Catavento
O vento brinca com a grimpa
da casa de minha bela amada.
Em minha aflição penso
que o catavento escarnece do pobre fugitivo.
Ele deveria ter notado antes
este sinal na casa
para que nunca ali tivesse procurado
uma mulher fiel.
Lá dentro o vento brinca com os corações
assim como no telhado, só que mais silencioso.
Por que se importariam com minha tristeza
se sua filha é uma rica donzela ?
3.Gefror'ne Tränen/Lágrimas Geladas
Lágrimas geladas
escorrem por minha face;
sem ter notado
estaria eu chorando ?
Lágrimas, minhas lágrimas,
como devem ser mornas
para virarem gelo
como o orvalho da manhã.
E no entanto brotam de meu peito
com um tal calor
que poderiam derreter
todo o gelo do inverno.
4.Erstarrung/Torpor
Em vão na neve procuro
a marca de seus passos,
onde ela andou, de braços comigo,
sobre os campos verdes.
Beijarei o chão
furando o gelo e a neve
com minhas lágrimas ardentes
até que possa ver a terra.
Onde encontrarei algum broto,
onde encontrarei a grama verde ?
Murcharam as flores
e a relva parece pálida.
Não haverá alguma lembrança
que eu possa levar daqui ?
Quando minha dor se calar
quem me falará dela.
Meu coração parece morto
guardando sua imagem gelada.
Se ele um dia se derrete
a imagem irá se esvair.
5.Der Lindenbaum/A Tília
Junto ao poço do portão
se ergue uma tília;
quantos sonhos doces
embalei à sua sombra.
Em seu tronco gravei
muitas palavras de amor;
na dor e na alegria
para ela sempre corri.
Hoje passei por ela
em meio à noite profunda
e mesmo na escuridão
tive que fechar os olhos.
E seus galhos sussurravam
como se me chamassem:
"Venha para cá, amigo,
aqui encontrará a paz".
Os ventos frios sopravam
bem em minha face,
o chapéu me voou da cabeça,
mas não me voltei para trás.
Agora estou há muitas horas
de distância daquele lugar
mas continuo ouvindo o sussurrar:
"Aqui você encontrará a paz !"
6.Wasserflut/A Inundação
Tantas lágrimas dos olhos
me caíram na neve;
seus flocos gelados se embebem
sedentos de minha dor ardente.
Quando a grama estiver para crescer
um vento morno soprará
e o gelo vai-se quebrar em pedaços
e a neve desfeita se derreter.
Neve, você sabe o meu anseio,
diga, para onde corre seu curso ?
Se você apenas seguir minhas lágrimas
logo irá dar no córrego.
Você passará com ele através da cidade,
entrando e saindo de ruas alegres;
quando você sentir arderem minhas lágrimas
ali estará a casa de minha amada.
7.Auf dem Fluße/À beira do Rio
Você que corria tão alegre,
rio claro e solto,
se tornou tão silencioso,
sem se despedir de mim.
Com uma crosta dura e imóvel
você se cobriu,
estirando-se frio e parado
por sobre a terra.
Em sua superfície gravei
com uma pedra pontuda
o nome de minha amada,
a hora e o dia.
O dia de nosso primeiro encontro,
o dia de nossa partida:
em torno do nome e das figuras
está traçado um anel partido.
Meu coração, nesse rio
você não reconhece sua imagem ?
Há também uma torrente furiosa
sob sua superfície ?
8.Rückblick/Um Olhar para Trás
Ardem as solas de meus pés
mesmo se caminho sobre o gelo e a neve,
não quero respirar de novo
até que as torres estejam longe.
Feri-me em todas as pedras
em minha pressa de deixar a cidade;
as gralhas no alto das casas
me jogaram granizo no chapéu.
Como outrora você me recebeu diferente,
cidade da inconstância;
cantavam em suas claras janelas
a cotovia e o rouxinol.
As tílias copadas floresciam,
as claras fontes jorravam com brilho,
e - ah ! - dois olhos de moça brilhavam:
aí, amigo, você entrega seu coração.
Quando penso naquele dia
quero olhar para trás ainda uma vez,
quero cambalear de volta
e postar-me de novo em frente à sua casa.
9.Irrlicht/O Fogo Fátuo
Para um terreno rochoso
atraiu-me um fogo fátuo;
achar um caminho de volta
não é coisa que me preocupe.
Estou acostumado a me perder no caminho
todos os caminhos levam ao fim:
nossas alegrias, nossas tristezas
são todas um jogo do fogo fátuo.
Pelo leito seco do riacho da montanha
sigo calmamente,
cada riacho termina no mar,
cada tristeza em sua sepultura.
10.Rast/Repouso
Só agora percebo como estou cansado,
quando me deito para repousar;
fiquei alerta ao viajar
pela estrada inóspita.
Meus pés não pediam descanso,
estava frio demais para ficar parado;
minhas costas não sentiam peso,
a tempestade me carregou para adiante.
Na carvoeira estreita de uma cabana
encontrei abrigo;
mas meus membros não têm repouso
tanto que ardem suas feridas.
Também você, meu coração, na guerra e na tempestade
tão bravo e tão destemido,
sinta nesta calma sua serpente
mexer-se com uma mordida ardente !
11.Frühlingstraum/Sonho de Primavera
Sonhei com flores coloridas
tal como florescem em maio;
sonhei com verdes campinas,
com alegres cantos de pássaros.
E quando os galos cantaram
meus olhos se abriram;
estava frio e escuro,
gritavam os corvos nos telhados.
Mas nos vidros das janelas
quem pintou aquelas folhas ?
Foi para rir do sonhador
que vê flores no inverno ?
Sonhei com amor correspondido,
com uma bela moça,
com abraços e beijos,
com alegria e felicidade.
E quando os galos cantaram
meu coração despertou;
agora me sento aqui sozinho
e penso em meu sonho.
Fecho de novo os olhos,
ainda bate ardente o coração;
flores em minha janela, quando voltarão a ser verdes ?
Quando terei minha amada nos braços ?
12.Einsamkeit/Solidão
Como uma nuvem turva
que atravessa o céu claro,
como, por entre as folhas dos pinheiros,
passa uma brisa débil:
Assim sigo meu caminho
arrastando os passos,
passando por entre a vida brilhante e alegre
solitário e sem que falem comigo.
Ah, por que está a brisa tão calma,
Ah, por que tão alegre esse mundo ?
Quando as tempestades rugiam
eu não me sentia tão solitário.
13.Die Post/O Correio
Na estrada toca o postilhão.
O que faz você bater tão forte,
meu coração ?
O correio não lhe traz carta alguma.
Por que esse estranho impulso,
meu coração ?
Ah sim, o correio vem da cidade
Onde eu tive uma amada,
meu coração.
Você quer olhar para lá
e perguntar como vão as coisas,
meu coração ?
14.Der greise Kopf/A Cabeça grisalha
A geada tingiu de branco
meus cabelos.
Pensei que já tinha envelhecido
e muito me alegrei.
Mas logo ela se derreteu,
meus cabelos voltaram a ser pretos:
agora ser jovem me espanta,
como ainda está longe a morte.
Entre o crepúsculo e a luz da manhã
muitas cabeças já embranqueceram.
Que imaginaria que a minha não mudasse
ao longo de toda essa jornada.
15.Die Krähe/A Gralha
Uma gralha esteve comigo
desde a saída da cidade;
até hoje fica pairando
por sobre minha cabeça.
Gralha, estranha ave,
por que você não me deixa ?
Por acaso você pensa
que breve serei carniça ?
Bem, não muito mais adiante
me levará essa jornada.
Gralha, deixe-me enfim ver
a fidelidade até a morte.
16.Letzte Hoffnung/A Última Esperança
Aqui e ali, nas árvores,
ainda se vê uma folha colorida.
Muitas vezes em frente às árvores
fico eu parado pensando.
Olho para a folha que sobra
nela coloco minha esperança;
se o vento brinca com minha folha
treme todo meu corpo.
Ah, se a folha cai por terra
minha esperança cai com ela:
também caio por terra
e choro na tumba de minha esperança.
17.Im Dorfe/Na Aldeia
Latem os cães, sacodem suas correntes;
dormem as pessoas em suas camas
pensando em tantas coisas que não têm,
recompondo-se o melhor que podem;
De manhã cedo tudo se desvanece;
pois bem, viveram seu pedaço de vida
e esperam que o que ainda lhes falta
hão de encontrar no travesseiro.
Corram-me com seu latido, cães de guarda,
não me deixem repousar nessas horas de sono!
Cheguei ao fim de todos os meus sonhos,
por que ficaria eu entre os que dormem ?
18.Der stürmische Morgen/Manhã de Tempestade
Como a tormenta rasgou
o manto cinzento do céu !
Pairam os restos de nuvens
entrechocando-se cansados.
E chamas vermelhas
brilham por entre elas:
essa me parece uma manhã
que reflete meus sentimentos.
Meu coração reconhece no céu
sua própria imagem pintada -
ele é só inverno,
um inverno frio e selvagem.
19.Täuschung/A Ilusão
Uma luz dança alegre em minha frente,
sigo-a de um lado para o outro;
sigo-a de boa vontade, mesmo sabendo
que ela me desviará do caminho.
Alguém tão desolado como eu
se rende alegre a um truque tão colorido,
que, para além do gelo, da noite e do terror
mostra uma casa iluminada e quente
onde mora uma pessoa querida.
Ilusão, é tudo o que eu ganharia.
20.Der Wegweiser/A Seta que Aponta o Caminho
Por que evito as estradas
por onde passam os outros viajantes
e procuro caminhos escondidos
por entre as rochas nevadas ?
Não cometi nenhum crime,
não preciso fugir das pessoas;
por que esse desejo insano
que me arrasta para lugares ermos ?
As setas estão nos caminhos
apontando para as cidades;
eu sigo em frente sem parar,
sem descanso mas querendo descansar.
Vejo uma seta
imóvel em minha frente;
devo seguir uma estrada
por onde ninguém já retornou.
21.Das Wirtshaus/A Estalagem
A um cemitério me levou minha viagem;
aqui vou me deter, penso comigo.
Verdes coroas fúnebres bem podem ser os sinais
que convidam o viajante cansado para a fria estalagem.
Estão nesta casa tomados todos os quartos ?
Estou exausto e prostrado, estou ferido de morte.
Estalagem impiedosa, por que você me rejeita ?
Pois seguirei em frente, sempre em frente, com meu cajado fiel.
22.Mut/Coragem
Se a neve me cai no rosto,
tiro-a de lá.
Quando o coração fala em meu peito
canto alto e alegre.
Não escuto o que ele me diz,
não tenho ouvidos,
não sinto seus lamentos,
lamentar-se é para os tolos.
Alegre vou pelo mundo
contra o vento e as intempéries;
se não há um deus na terra
nós mesmos seremos deuses.
23.Die Nebensonnen/Os Sóis Fantasmas
Vi três sóis no horizonte,
com o olhar firme, longamente;
e eles estavam lá tão imóveis
como se nunca fossem me deixar.
Ah, não são esses meus sóis,
que vão encarar outras faces !
Faz pouco eu tinha três outros
mas os dois melhores se foram.
Se o terceiro também se fosse
eu me sentiria melhor no escuro.
24.Der Leiermann/O Homem do Realejo
Lá, para além da aldeia,
há um homem do realejo
que toca com dedos gelados,
o melhor que pode.
Ele se arrasta descalço no gelo
e seu pires permanece vazio.
Ninguém quer ouvi-lo,
Ninguém olha para ele
E os cães rosnam
Para o velho.
Ele deixa que tudo aconteça,
Toca e seu realejo nunca se cala.
Estranho velho,
Devo acompanhá-lo ?
Você acompanhará meu canto
Com o realejo ?
Wilhelm Müller/Eduardo Gabarra © 1998
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