No CD “Fantasia”, gravado em Budapeste com participação do violonista Christian Dozza
Num texto de 1970, Steven Paul Scher, pioneiro dos estudos sobre as relações entre música e literatura, expõe seu conceito de “música verbal” como “qualquer apresentação literária, em poesia ou prosa, de composições musicais reais ou ficcionais”. Tomando emprestado dele esta concepção, e invertendo os termos, pode-se dizer que Alexandre Guerra – consolidado autor de trilhas sonoras em nível internacional – faz “literatura musical”. Ao longo da história da música muitos compositores também “contaram” histórias, das “Quatro Estações” de Vivaldi a “Scheherazade” de Rimski-Korsákov.
Acontece que desde o momento em que a música instrumental foi eleita como prima donna da arte dos sons (invertendo o que até o final do século 18 imperara, quando era considerada música inferior, porque lhe faltavam as palavras), por obra e graça de Beethoven e dos românticos do século 19 quem conta estórias é injustamente etiquetado como um degrau abaixo do Olimpo da música abstrata, “autônoma”.
Injustiça. O recém-lançado CD “Fantasia” de Alexandre Guerra, foi gravado na Hungria, com o próprio compositor regendo a Orquestra Sinfônica de Budapeste. E pertence à mais nobre das linhagens musicais de todos os tempos: a da música literária, ou seja, a que conta sempre uma história (ou estória). Apresenta cinco obras: um concerto para violão e orquestra e quatro composições para cordas, todas músicas assumidamente literárias.
O concerto, que leva o título de “Fantasia para violão e orquestra”, com participação de Christian Dozza, parrudo em seus quase 20 minutos, contém ao menos quatro movimentos embutidos que se sucedem sem interrupção. “Conta” em sons uma das típicas fábulas místicas de Paulo Coelho, “Manual do guerreiro da luz” (prólogo do livro, disponível na internet). A escrita cristalina do violão-menino ansiando pelos sinos do templo destaca-se do tecido orquestral refinado de Guerra, experimentado orquestrador forjado no dia-a-dia das trilhas sonoras.
Em seguida, o “Lamento”, uma peça comovente. Exprime, em doloridas porém resignadas melodias acolchoadas em ricas texturas de cordas, o destino inexorável dos índios brasileiros, encarnado num tragicômico encontro do chefe Araweté com os brancos da Funai. “Sou um melodista incorrigível”, afirma Alexandre Guerra. Vá ao texto brilhante de Eliane Brum (El Pais, 16Fev2018, disponível na internet).
As últimas três faixas são ocupadas por contos musicais de Guerra.
O no. 1 mostra que não há porto seguro, a vida é mesmo um vaguear sem destino, inspirado em “A cidade adormecida”, do escritor francês simbolista Marcel Schwob (1867-1905), disponível na internet.
O conto no. 2 narra as peripécias de Jacinto, personagem do romance “A cidade e as serras”, de Eça de Queiroz (disponível na internet), que era feliz no campo e não sabia; foi morar em Paris, terminando por retornar à sua vidinha original. Uma ode à natureza, finamente retratada por Guerra.
“Fantasia” conclui pra cima, com o Conto no. 3, uma linda fábula de Rubem Alves sobre o encanto, que está debaixo dos nossos narizes justamente aonde não o procuramos.
Durante esta semana, você pode ouvir “Fantasia” na íntegra, quantas vezes quiser.
FAIXAS
1. Fantasia para violão e orquestra
2. Lamento para cordas
3. Conto para cordas n°1
4. Conto para cordas n°2
5. Conto para cordas n°3
Composição e regência: Alexandre Guerra
Orquestra Sinfônica de Budapeste
Violão: Christian Dozza
. Gravado em Budapeste, Hungria.
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